Ela acabou de inventar um planeta bem verdadeiro. Com a alma renovada há uma boa mão cheia de anos, garante a plenos pulmões que não vai sucumbir. Ainda bem que assim é!
Está imparável, aquela que já foi considerada a voz do milénio, corria o distante ano de 1999. A sua força e vontade de viver são históricas, mas os seus mais de 80 anos (não somos precisos na idade porque isso não se deve dizer, por uma questão de respeito) deveriam impor-lhe alguma acalmia. Mas não, não é isso que acontece desde o extraordinário A Mulher do Fim do Mundo (2015), passando pelo muito recomendável Deus é Mulher (2018), até chegar ao magnífico e muito recente Planeta Fome. Para os mais conhecedores e atentos, o título do álbum agora saído é o link perfeito para nos fazer recuar muitas décadas, até a um longínquo programa de caloiros da brasileira Rádio Tupi, quando Ary Barroso tentou ridicularizar a menina que tinha à sua frente. Como resposta, recebeu uma lição. Mas agora, perante tanta e tão vibrante vitalidade, resta pouco mais do que questionar que mulher é esta que se reinventa de forma tão abrupta aos nossos olhos? A resposta tem um nome: Elza Gomes da Conceição, a nossa muito querida Elza Soares!
Pois é, she did it again! Mudou um pouco a turma que com ela foi para o estúdio de gravação, mudou o eixo sonoro de São Paulo para o Rio de Janeiro (adeus, Guilherme Kastrup!, olá Rafael Ramos!), mudou ainda o lote de compositores escolhidos. O resultado é um disco mais melódico do que os anteriores, mas guerreiro como esses outros também são. Nota-se mais o gosto pelo samba nesta enorme crónica de um país em farrapos chamado Brasil. E se a substância cantada é, muitas vezes, terrível e vil, a elegante crueza dos arranjos faz de Planeta Fome um disco que apetece ouvir até à saciedade, algo que, no entanto, será difícil de atingir. É certo que a verdadeira mensagem do álbum vive da indignação resultante do estado atual do seu próprio país, e isso confere-lhe uma aura de credibilidade bastante forte, mas também é verdade que do ponto de vista estritamente musical, Planeta Fome talvez seja mais amigo dos ouvidos do que os anteriores já referidos. É mais redondo, mais cativante, e isso serve melhor a voz (já não tão) áspera de Elza Soares.
Vamos ao grandes momentos do álbum, sem mais perda de tempo: “Libertação” e “Brasis” são canções de guerrilha (“tem um que faz amor, outro que mata”, canta Elza em “Brasis”) e fazem um retrato bem completo e inequívoco do panorama bipolar da nação brasilis. O nosso irmão transatlântico continua a ser um país de atrasos, mas também de futuros que se esperam reluzentes e cheios de alma, que no presente, no entanto, teima em definhar. São ambas ótimas canções, a primeira puxando ao samba, a segunda ao frevo-rock, embora apresentadas com maliciosas ambiguidades rítmicas. Depois, um outro tema se destaca, misturando algum estilo “brega com jeito de jovem guarda”, com o rap manguebeat de B Negão em “Blá Blá Blá”. Também há bonitas orquestras em “Tradição”, tema dos titânicos Sérgio Britto e Paulo Miklos. “Lírio Rosa” é bonita como o nascer do dia, tranquila e plena de luz crescente, um “colírio” de paz no turbilhão frenético de Planeta Fome. Faz lembrar o Sertão e a sua riqueza cultural. Em “Não Tá Mais de Graça” ouve-se de novo o chicote da “Che Guevara de sofá”, garantindo que “a carne mais barata do mercado não tá mais de graça”, verso âncora de um tema antigo (“A Carne”) do ótimo Do Cóccix Até o Pescoço, disco de 2002. A terminar o álbum, nova canção forte e impactante, pondo o dedo na ferida da descriminação social e da imparidade racial. Para surpresa máxima, as citações, quase no fim, de “Geni e o Zepelim”, do mestre Chico Buarque, e de “Comida”, dos Titãs, ambas presentes em “Não Recomendado”.
Enfim, o que mais se pode dizer de um disco que procura links com o passado, que é um espelho do presente e que aponta para um futuro (façamos figas) necessariamente melhor? O que dizer de Elza Soares, que teima em permanecer firme e com sangue na guelra nesta sua mais recente ressurreição artística? Referir apenas, e para finalizar, que Planeta Fome é um disco urgente. Um disco que recupera a ideia de que ouvir música pode não ser apenas um gesto de pendor cantarolante, coisa que se assobia enquanto pouca atenção se presta à vida. Pode (e deve, por vezes) ser mais do que isso. Pode ser um gesto cívico, uma arma de combate que tem nas palavras as suas únicas balas. Até porque, se forem perdidas, pelo menos não matam gente inocente.
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