domingo, 7 de janeiro de 2024

Nick Cave and The Bad Seeds – Ghosteen (2019)


 

Nick Cave chega de alma aberta para nos oferecer um arrepiante testemunho artístico. No seu coração há melancolia, sofrimento e espectros de crianças que flutuam num céu imaginário de adultos em busca de paz.

O Nick Cave que conhecemos parece ter os dias contados. Parece não desejar outra coisa, apenas isso, o fim. Os últimos anos levaram-no ao ponto de ter de viver com sobras, já não com ganhos. De ter de se haver com o que restou de si mesmo, depois de um apocalipse de perda, de dor e de sangue. Perder um filho é também morrer por dentro todos os dias, e vão sendo muitos os que marcam a eternidade da sua angústia e do seu sofrimento infinitos. Se já sentíamos aflição em Push The Sky Away e em Skeleton Tree (este já com razões bastante substantivas), em Ghosteen atinge-se o pináculo desse tormento, da fraqueza e do desânimo. No entanto, dos grandes esperamos sempre que resistam. Esperamos, sobretudo, que caiam de pé, se o caminho e o destino os levar a isso, mas que depois se ergam de cabeça bem firme e levantada. Ghosteen representa a queda, a prostração, o fim. Quando Nick Cave canta “And I’m just waiting for my time to come”, percebemos que chegou a hora de lhe dizermos adeus. Descansa agora em paz, Nick Cave, para poderes regressar mais tarde, numa qualquer manhã de sol.

Parece haver em Ghosteen uma cisão, um afastamento do corpo, uma libertação do espírito e da alma. Nick Cave é, ele mesmo, o protagonista dessa complexa metamorfose, porque já só lhe importa alcançar o etéreo, aquilo que o espera para lá da existência. É para esse local que aponta as suas forças. Despiu-se de tudo, e já quase nem se nota a presença daqueles que o acompanham desde sempre. Por onde andam os Bad Seeds neste desmaterializado registo? Não se notam, de facto. Também eles parecem fantasmas que vão pincelando, a espaços, o canto elegíaco de Nick Cave. Ghosteen é uma missa, é a celebração de um sacrifício em nome de um qualquer Deus maior que, neste caso, parece carregar o rosto e o corpo de um filho menor. O seu.

Musicalmente, o que encontramos em Ghosteen é um conjunto de temas (preferimos não lhes chamar canções) que pouco ou nada se distanciam uns dos outros. Parecem gémeos, de tão ambientais, embora, a espaços, com um ou outro pico diferenciado de nuances rítmicas. Nick Cave experimenta falsetes como nunca o fez, por vezes acompanhando-os com coros de eucaristia. É austero, todo o álbum que se divide, como se sabe, em dois momentos particulares. O primeiro, com oito composições, intitula-se The Children. A segunda, mais curta, é composta por dois temas mais longos, intervalados por uma peça de spoken word, e apresenta-se como Their Parents. O músico australiano diz, de Ghosteen, tratar-se de um “espírito migratório”. É bem verdade.

De salientar a presença de Warren Ellis, decisiva neste disco. É ele quem maneja os loops, quem promove as eletrónicas paisagens sonoras constantes em todo o álbum, do primeiro ao último minuto. Ghosteen é, por tudo isto, o prolongamento sonoro e estético (sublinho a expressão sonoro, uma vez que do ponto de vista dos conteúdos poéticos, a conversa é naturalmente outra) de Push The Sky Away e de Skeleton Tree, embora levado a extremos impensáveis. Os temas apresentam-se totalmente descarnados, desmaterializados, como se apenas a sua essência importasse. Adornos e adereços são inexistentes. Só a crueza importa.

Dizíamos há pouco que não há temas que se destaquem uns dos outros de forma evidente. Mantemos, naturalmente, a ideia agora, embora queiramos, mesmo assim, destacar alguns: “Bright Horses” é superlativo, mágico, de uma beleza desarmante, o mais bonito momento de todo o primeiro disco. No segundo, o relevo maior cabe a “Hollywood”, sobretudo na sua segunda metade (o tema é o mais longo de todo o trabalho, apresentando mais de catorze minutos de extensão). É aí que ouvimos Nick Cave cantar “It’s a long way to find peace of mind / And I’m just waiting now for my time to come”. Estes versos finais dizem tudo sobre Ghosteen. Ouvi-los de forma repetida, como acontece na parte final do tema, envoltos em densas neblinas sonoras, faz-nos pensar que Nick Cave, tal como o vínhamos conhecendo há mais de três décadas, já não é o mesmo, teve o seu fim, e o mundo assistiu em direto, no passado dia 3 de outubro, a esse extraordinário acontecimento. Resta-nos esperar que regresse das cinzas, como Fénix. Enquanto esse tempo não chega, Nick Cave irá pairando sobre nós, arrastando-nos no torrencial transe hipnótico de Ghosteen.



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