O sampling como instrumento. O sampling como linguagem. O sampling como forma de arte.

Quando se pensa em hip-hop, o que nos vem imediatamente à cabeça é o rap: os versos falados e ritmados do MC. De tal forma que a própria noção de hip-hop instrumental nos parece um absurdo. Esquecemo-nos, porém, do outro elemento constitutivo do hip-hop: os samples. Ou seja, fazer música roubando bocados das músicas dos outros. Os mais conservadores desdenham este ofício, considerando-o como desonesto e não criativo. Ora se há coisa que a história das artes plásticas nos ensina é o potencial criativo do roubo. Com um guiador de bicicleta encontrado no lixo, Picasso fazia os cornos de um touro. Colando uma lagosta num telefone, Dali criava um célebre objecto surrealista. Com um urinol virado ao contrário, Duchamp concebia o seu famoso ready made. Escolher um objecto pré-existente e enquadrá-lo num novo contexto é, em si mesmo, um acto criativo. Se aceitamos este princípio nas artes plásticas não há nenhuma razão para não o estender à música. Quando os Sugar Hill Gang roubam uma linha de baixo aos Chic e começam a “rapar” por cima, um novo objecto musical aparece.

Com o passar dos anos, a arte do sampling foi ficando vez mais complexa e inventiva. Equipas de produção como os Bomb Squad (Public Enemy) e os Dust Brothers (Beastie Boys) usavam dezenas de samples num único beat. Havia, porém, um limite: por mais sofisticadas que fossem as batidas estas nunca eram autónomas. Tinham que sempre ser postas ao serviço de sua majestade o rap. É aqui que entra um senhor chamado DJ Shadow, um dos primeiros produtores de hip-hop a excluir por completo o MC da equação. O seu álbum de estreia, Endtroducing….., é construído apenas com samples, nascendo assim o hip-hop instrumental. Liberto da função de servir o rap, os beats de DJ Shadow ganham uma liberdade inaudita. Se o rap não existe, então, tudo é permitido. Os limites do sampling são apenas os limites do digging.

Ora se há coisa que DJ Shadow gosta de fazer é, justamente, passar tardes infinitas em lojas de discos em segunda mão, esgravatando os vinis empoeirados em busca de matéria-prima. Sob este prisma, Endtroducing é uma celebração da riqueza cultural extraordinária que é o catálogo de música em vinil (ainda hoje muito mais vasto do que o arquivo digital). No processo de digging, não há estilos nem artistas proibidos. Até um mau disco pode conter uma parcela que, recontextualizada, dá um belíssimo sample. O segredo de Endtroducing é esse: centenas de erros colocados finalmente na disposição certa.

A precisão de DJ Shadow raia a loucura, roubando de cada disco apenas micro-componentes: um bombo aqui, uma tarola ali, um baixo acolá – todo um alfabeto com o qual constrói complexas colagens. Foram precisos dois anos enfiado num estúdio para que este laborioso processo de corte e cola ficasse completo. Endtroducing não é apenas um disco, é a legitimação que faltava do sampling como obra de arte. E não falamos apenas da sua técnica prodigiosa (“o Hendrix do sampling“, como muitos o chamam). Falamos da beleza intrínseca do produto final. Cada tema é como se fosse uma curta-metragem: contando uma história, criando uma atmosfera, despertando emoções. O seu lado cinematográfico e melancólico, e os seus tempos lentos e opressivos, aproximam-no do som de Bristol. Parece uma contradição mas é verdade: o sol da Califórnia também tem o seu trip-hop.

As vozes que ocasionalmente aparecem também são samples, retiradas sobretudo de bandas-sonoras. Estes diálogos, neutros no contexto original, tornam-se inquietantes quando transplantados para o contexto musical sombrio de Endtroducing. Uma frase retirada de uma comédia pode soar agora a um filme de terror.

Que Endtroducing é uma obra-prima, restam poucas dúvidas. Mas pode ser mais do que isso: pode ser uma epifania. Falamos, é claro, para os haters do hip-hop – aquela malta que só de ver um boné virado para trás fica logo com suores frios. Ora DJ Shadow é o hip-hop perfeito para quem… não gosta de hip-hop. Por isso, muito cuidado com este cavalo de Tróia, amigos. Uma vez rendidos à arte do sampling, pode não haver caminho de regresso.