Nacho Vegas foi beber em Violeta Parra alguma da inspiração para fazer seu mais recente disco. O menino sombrio da música moderna espanhola inflou-se de uma dolente luminosidade redentora, e deu-nos em Violética um duplo álbum de imenso requinte e bom gosto.

Despachemos as apresentações em duas ou três linhas de texto: Nacho Vegas é um nome de grande importância na música do país vizinho. Pertenceu aos Eliminator Jr., Lucas 15 e fundou os históricos Manta Ray, banda fulcral da primeira fornada indie espanhola. Depois, um pouco antes do virar do século, iniciou uma carreira a solo de prestígio e tem até hoje inúmeros trabalhos gravados. Em Portugal, como seria de esperar, é gloriosamente desconhecido.

A meio do ano passado, Nacho Vegas estreou Violética, álbum que mistura em quase duas dezenas de canções alguns dos seus maiores tiques e vícios: Tom Waits anda por algumas delas com perfeito à-vontade, mas também se respira Nick Cave num ou noutro tema, notando-se ainda alguns ecos de The Jesus and Mary Chain. Nada de muito novo, portanto. O inesperado é Nacho Vegas ter pensado um disco (ou parte dele, pelo menos) à sombra da parra de Violeta, essa enorme folclorista chilena que há muito é estrela brilhante na história do seu país, e que cada vez mais cintila um pouco por todos os ouvidos nos quatro cantos do mundo. O disco, como dissemos, é duplo e ouve-se como quem come um pitéu michelin, embora sem as cagâncias e bazófias típicas que rodeiam o prémio dado às mais famosas comezainas. Na primeira parte de Violética, o prato principal. Na segunda, a sobremesa e o digestivo. Assim mesmo, até nos empanturrarmos com tanta e tão boa fartura.

O primeiro disco é verdadeiramente irrepreensível. Não há uma única canção menor, antes e apenas o crème de la crème de um autor que todos deveriam conhecer e que ao longo de décadas já nos brindou com trabalhos como EsperanzaEstratexa ou Torres de Electricidad (enquanto Manta Ray) ou, em nome próprio, com pequenas pérolas de estilo e gosto como Actos InexplicablesDesaparezca AquíEl Manifesto DesastreLa Zona Sucia, entre outros. Em Violética, o tom dolente mas imenso de brilho e luz faz-se com canções sublimes. “Ser Árbol”, por exemplo, é tão bonita que apetece chorar de prazer. Ouçam-lhe atentamente os coros, ingrediente angelical que confere ao tema aquilo que poderá muito bem ser descrito como um delicado pedaço de paraíso. Ou a Waitsiana “Bajo El Puente de L`Ará”, tão arrastada e cheia de pó. Mas se tivéssemos de escolher os melhores momentos dessa primeira fatia sonora (tarefa difícil, e sobretudo escusada) então ficaríamos com “Desborde” (oh, meu Deus!), “Las Palabras Mágicas” (oh, meu Deus!) e “Todo o Nada” (oh, meu Deus), sempre conscientes de que não devemos nunca utilizar o nome do Criador em vão. É que são divinais, as três, e por isso parecem ser a conta que tantas vezes dizemos ser-Lhe devida.

Depois, o segundo momento do banquete. O problema (é apenas uma força de expressão, entenda-se) do segundo disco é, ou começa por ser, não nos querermos separar do primeiro. Mas quando avançamos pela exuberante e dura “Maldigo Del Alto Cielo”, tema original de Violeta Parra, cantado a meias por Nacho Vegas e pela sua querida Christina Rosenvinge, percebemos que o delicioso repasto sonoro continua, embora um pouco menos gourmet. No entanto, é bom ouvirmos com atenção”Tengo Algo Que Decirle”, por exemplo.

Violética é um disco com canções de amor, mas também político e muito lúcido, olhando para o presente e para o futuro que nos espera logo ao virar da esquina, interrogando ambos os momentos. É um disco soberbo, como Nacho Vegas há muito não nos dava. Podemos agora, tranquilamente, permitir que o músico asturiano volte a desaparecer por mais algum tempo. Violética chega e sobra para nos entretermos com ele durante alguns anos.