Um disco póstumo, talvez o melhor da carreira de um músico excepcional que, se quisesse, tinha sido o mais premiado da sua geração. Mas quis apenas que não o incomodassem, absorto na sua arte.
É impossível dissociar este disco da carga emotiva que o envolve. E é também provável que isso tolde o nosso julgamento sobre esta obra que Richard Swift nos deixou, já gravada, misturada, pronta a editar.
The Hex saiu em Outubro passado (formato digital, cd e vinil só em Dezembro), três meses depois da morte inesperada de Swift. O cantor-compositor-produtor-esteta tinha 41 anos e uma relação demasiado próxima com o álcool. O fígado cedeu poucos dias depois de ser hospitalizado (e depois de algumas visitas falhadas a centros de desintoxicação). A notícia do internamento veio com alguma surpresa, a notícia da morte foi um choque tremendo. Pensava-se que a medicina resolvesse facilmente o que parecia ser um caso simples de hepatite.
E assim, em menos de nada, vimo-nos privados de uma das mais brilhantes mentes musicais do nosso tempo, ao mesmo tempo um dos talentos mais subvalorizados. Talvez o termo mais certo seja despercebido.Iniciou a carreira discográfica no início do século mas passou sempre ao lado do grande público. A crítica especializada e o núcleo duro de fãs não hesitam em considerar Swift um tipo acima da média. Mas – e muito por vontade própria – nunca deu o salto para um público mais vasto. Nada contra, embora seja um pouco egoísta esconder-se assim das massas.
Os amigos próximos falam dele como um tipo cheio de vida, com sentido de humor apurado, genuinamente bem disposto. Mas a persona pública de Richard Swift sempre foi algo resguardada, misteriosa. Nunca quis expôr-se demasiado, era mais de estar no seu laboratório – o estúdio National Freedom, que tinha em casa, no estado de Oregon.
Enquanto produtor, o seu toque de Midas-via-Motown nota-se nos discos de Damien Jurado, Foxygen, Nathaniel Ratellif & The Night Sweats, Ray LaMontagne, Lucius ou The Mynabirds. Enquanto escritor de canções, embora apreciador de uma certa sujidade quase lo-fi, era capaz de perceber quando banhar as suas composições numa certa sensibilidade pop, fazendo hits incríveis (que, se adoptasse outra estratégia, seriam #1 dos tops).
Mas Swift não queria tops. Aliás, era feliz a estar atrás dos holofotes e chega a ser meio desperdício que tenha sido “músico de sessão”, a tocar ao vivo com os Shins, Black Keys e The Arcs.
E assim, nas sombras, foi fazendo a sua carreira. Lançou sete discos em nome próprio e no repertório de Swift parece não haver meio termo. Ora faz singles pop luminosos e perfeitos, ora baladas carregadas de nevoeiro e tristeza – aterradoramente bela, mas inequivocamente tristeza. A maior parte das canções são conduzidas pelo piano, muitas vezes soa a piano de salloon – e outra vez esse imaginário: o pianista que está na sua vida a tocar, enquanto os protagonistas do western estão aos tiros.
Este artigo já vai longo, mas como é a primeira vez que se escreve aqui sobre Richard Swift, seria desrespeitoso falar só do disco. E desrespeitoso é na mesma, porque a obra dele merece a mais cuidada atenção.
Posto isto, falemos do disco que dá nome a este texto. The Hex é o último disco de Swift e é um disco de despedida. Quando o ouvimos, já sabemos que ele morreu. E quando o compôs, provavelmente também ele saberia. Talvez não soubesse ao certo quando, mas imaginaria que não ia durar muito mais. Então a carga emocional deste disco torna-se bem mais carregada.
E é um disco de despedida em várias direcções. Enquanto escrevia as canções, Swift perdeu a mãe e a irmã, ao compôr estes temas ia fazendo o seu luto – ao mesmo tempo que nos vai dando ferramentas para fazermos o nosso.
Em The Hex, as premissas que sempre caracterizaram a música de Swift estão mais potenciadas. Há – desde sempre – uma certa sujidade que perpassa uma boa parte das canções, quase parece desleixo, cheio de neblina, que só adensa os fantasmas que vivem naquele corpo. Neste disco, esse nevoeiro é mais cerrado e os fantasmas mais reais (literlamente. Richard Swift acreditava ter sido amaldiçoado logo à nascença).
E neste disco continua a espantar os seus fantasmas – como qualquer génio, é uma alma atormentada e coloca neste álbum alguns dos seus pensamentos mais negros. Mas não nos quer deprimir, é antes uma constatação da vida como ela é, de nós humanos como somos, com todas as nossas falhas, mas há uma aceitação serena… as últimas palavras da última música são “Que sera, sera”.
Tudo isto envolto no género que criou para si. Com um amor incondicional à soul dos anos 60 e girl-groups, transformou isso na sua própria garage-soul, adornada depois com os tais toques de salloon e rock de inspiração barroca.
Neste disco, encontramos menos singles luminosos, tudo é mais a preto e branco e as baladas – que as há em todos os discos, neste álbum são de cortar a respiração. E tem uma música, “HZLWD“, instrumental, que é uma das músicas mais belas de sempre.
The Hex é, afinal, um disco de despedida, de vida para além da morte. E é provavelmente o melhor álbum de Richard Swift. Mas recomenda-se a escuta da discografia completa dele. Um autor de excepção que nunca pensámos perder tão cedo. Serve de consolo que, ainda assim, tenha deixado vários discos. E quando nos fartarmos de ouvir os dele, temos bastantes em que se sente a aura de Swift, o produtor.
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