Disco de estreia de uma das bandas que contribuiu em larga medida para o pop rock como o conhecemos hoje, Talking Heads:77 ainda soa fresco e actual.

Comecemos pela pergunta do elefante na sala – então isto não é um especial sobre o punk? Se sim, que raio estão os Talking Heads aqui a fazer? Pois bem, as razões são óbvias e históricas. Para começo de conversa, o primeiro concerto dos Talking Heads foi no mítico CBGB, a abrir para os Ramones. Eles foram uma das cinco grandes bandas a emergir do antro criado por Hilly Kristal (Television, Patti Smith Group, Ramones e Blondie sendo as restantes) destinado a ouvir-se música Country, BlueGrass, e Blues. O plano saiu completamente furado, já que a foi a trupe do punk rock e do new wave que encontrou a cave perdida na Bowery, e a transformou na sua segunda casa. A envolvência dos Talking Heads no aparecimento e desenvolvimento do punk foi portanto pertinente e crucial e é como tal que também selecionámos este álbum para o especial em curso.

Entremos portanto no universo Talking Heads pela porta da frente – após dois anos em concertos (o primeiro referido acima foi em Junho de 1975, nos velhos tempos a coisa demorava um pouco mais…) eis que surge em Setembro de 1977 o álbum de estreia do grupo formado por David Byrne, Chris Frantz, Tina Weymouth e Jerry Harrison. Dois estudantes de arte, a namorada do segundo (que aprendeu a tocar baixo só porque não encontravam mais ninguém) e um baterista recrutado a outra banda. Em conjunto criaram um melting pot de estilos, indo beber aos seus comparsas punk que partilhavam palco de CBGB, a ritmos funk de Motown bem como a ritmos mais dançáveis patentes na música caribenha. Na teoria, nada fazia sentido, mas já sabemos como são estes miúdos que tiram cursos de arte, têm a mania de ver coisas onde os outros não vêm. E foi assim que Byrne e comparsas criaram algo realmente inovador – não é por acaso o nome new wave criado para rotular a coisa. A dúvida era mesmo se conseguiriam levar as suas invenções musicais a um público que, naquele momento, estava virado para outras coisas.

“Uh-Oh, Love Comes to Town” é o ponto de partida e começamos com um delírio pop, letra deconexa sobre enigmas e pistas misteriosas, de fácil digestão. Mas isso desaparece logo a seguir, “New Feeling” já traz mais água pela barba derivado das bruscas mudanças de ritmo, afinações de guitarra fora do normal, em espécie de free jazz mas com guitarras e sintetizadores em vez de trompetes e saxofones. A voz de Byrne com variações de tom e de intensidade, parecendo alguém à beira da insanidade. O esplendor da arte de ouvir elementos que parecem fora do sítio mas que tudo faz sentido no conjunto e nada como voltar atrás e ouvir novamente para ter uma percepção do que nos atingiu os tímpanos e descobrir outros detalhes que terão passado despercebido à primeira audição. Esta poderia ser a descrição perfeita de todo este álbum, recheado de detalhes dissonantes que se conjugam de forma totalmente inesperada.

O arranque de baixo e guitarra puro funk de “Who is it?” tem impacto imediato no corpo, apela ao movimento com urgência e as sinapses enviadas pelo cérebro chegam aos membros quase sem nos percebermos o que está a acontecer. “No Compassion” é música de três atos, todos diferentes, todos interligados, todos com a sua devida intensidade. Passamos para o lado B e ouvimos uma música sobre um livro. Ou será sobre uma garota? Antes de chegarmos duo final do álbum temos duas excelentes canções, “Don’t Worry About the Government”, atingindo o conforto da modernidade no seu nervo, e “First Week / Last Week” com uma ponte lá pelo meio de saxofone adornado por Byrne em registo perto do scat que se encontrava muito em jazz.

E então eis que entra “Psycho Killer” e “Pulled Up”. A primeira, muito possivelmente a mais conhecida da banda ainda hoje, a segunda a minha preferida. A primeira cheia de laivos artísticos, cantada em parte em francês, a segunda uma torrente de energia. A primeira a retratar os pensamentos de um serial killer, a segunda super positiva, agradecendo a quem ajudou o narrador a ser reconhecido. A primeira “I hate people when they’re not polite”, e a segunda “I was complaining, I was down in the dumps / I feel so strong now cause you pulled me up!”. As duas em conjunto forma um final incrível para um álbum incrível, que se ouve hoje, no ano da santa graça de dois mil e dezoito, com um prazer imensurável, como se tivesse sido lançado ontem.