Cinderella Cyborg vive à altura do seu nome – misturando a beleza da personagem da Disney com a distopia de um futuro possível.

É tema na ordem do dia, do mês, do ano, da década e século, e crucial para a humanidade – Será possível estabelecer um diálogo entre humano e máquinas? Misturar o improviso e a liberdade, que julgamos ser características únicas nossas, com a rigidez do que determinam os chips dos computadores? Não é uma pergunta nova – em 1968 Philip K. Dick questionava “Do Androids Dream of Electric Sheep?”, mas nessa altura era um lunático. Em 1982 Ridley Scott agarrou no livro e transformou-o no aclamado “Blade Runner”, no qual, curiosamente, a acção se passa no ano de 2019 (já ao virar da esquina). Visto de Outubro de 2018, parece-nos que a “profecia” de existirem ciborgues a passearem entre humanos não se irá realizar já no ano que vem, mas todos assumimos que é mesmo só uma questão de tempo. Quanto tempo não sabemos, mas que lá chegaremos, chegaremos.

Passado este interlúdio, que serve de pano de fundo ao disco, mergulhemos então no novo trabalho de originais do pianista português, que nos últimos anos reinventou fados cantados por Amália Rodrigues ao piano (Amália por Júlio Resende), trouxe ao público português um dos segredos mais bem guardados do país vizinho – a catalã Sílvia Pérez Cruz – para vários concertos e sobretudo o álbum Fado & Further, criou e dirigiu uma banda indo rebuscar a poesia inglesa de Fernando Pessoa e transformando-a em música (Alexander Search) e prosseguindo com os seus concertos de improviso, de versões jazzísticas de músicas pop-rock na Fábrica de Braço de Prata, muitas vezes com Salvador Sobral, Alexandre Frazão e outros, servindo-nos uma degustação deliciosa do seu talento.

Cinderella Cyborg é o tal diálogo acima mencionado. O piano de Resende assume o papel do humano, cérebro pensante que conta com contrabaixo, guitarra elétrica e bateria do seu lado, ao passo que pads, gravações e máquinas de sons assumem o outro lado, o da música eletrónica. Ao contrário do que fazia Rick Deckard, aqui não há perseguição a replicants, opta-se antes pela via da negociação para se conseguir atingir a paz e harmonia entre ambos. Porque o futuro terá de passar inexoravelmente pela conciliação entre espécies, importa estarmos preparados para isto e saborearmos cada toque no piano, cada milímetro deste ambiente criado que nos faz imaginar como será o futuro, conferindo um lado mais tranquilizador ao mesmo.

Em Espanha já há quem denomine Resende como o Keith Jarrett português, e nao seremos nós a contradizer o que nos parece uma comparação certeira. A cada experiência feita Júlio Resende incorpora no seu piano mais e mais variáveis, mais e mais tonalidades, açambarcando os universos do pop-rock, do fado, do jazz, da música clássica e, com este disco, da música electrónica e do hip hop, que se faz ouvir na voz de Sam Azura e aparece em dois temas, “Cinderella Cyborg” e “LisbonHood”, precisamente os que abrem e fecham o álbum. Se quisermos entrar um pouco mais na amálgama de interações sonoras que este álbum nos traz, “LisbonHood” é mesmo a amostra perfeita – fado, hip hop, musica electrónica e piano a revolver em redor de tudo. Tresanda a Martim Moniz.

Dificílimo de descrever em palavras (como aliás qualquer um que esteja nesta linha de “trangressão” entre géneros), Cinderella Cyborg é um assombro de disco, daqueles que nos ficam na retina do ouvido e não se dissipam na espuma dos dias, e que a cada audição nos mostra novos recantos que antes tinham passado despercebidos. A descoberta é pois, constante.