A promessa estava feita desde 2016. Contudo, só dois anos depois é que ASTROWORLD viu a luz do dia. E bastaram quatro dias de anúncio prévio para que este foguetão construído por Travis Scott se tornasse o centro de atenção do mundo.

A sua ascensão foi rápida e agora, passados dois meses desde o seu lançamento, é possível afirmar sem sombra de dúvida que esta nave vai ficar a pairar no cosmos do hip hop durante bastante tempo, lá em cima entre outros astros, para assombrar e inspirar quem, cá na Terra, aspira a um dia lá chegar.

Travis Scott não é propriamente um novato por estas bandas – ASTROWORLD é o seu terceiro disco, depois de Rodeo (2015) e Birds in the Trap Sing McKnight (2016). A estes três discos, junta ainda as mixtapes Owl Pharaoh (2013), a épica Days Before Rodeo (2014) e o álbum de colaboração com Quavo, lançado no final do ano passado, Huncho Jack, Jack Huncho. Apesar disso, é pela mão de Kanye West que Scott começa a mexer-se na liga principal do hip hop, como membro da equipa de produção da GOOD Music de West. E se Kanye hoje em dia está mais ocupado a criar desastres de relações públicas em catadupa, ninguém lhe tira a sua visão artística e olho para o talento. Sob a alçada do seu mestre, Travis rapidamente encontrou a sua voz, soube demarcar-se do que de resto se fazia no mundo da música e apanhou todos de surpresa com o portentoso Rodeo. Se os seus lançamentos entretanto faziam com que este parecesse cada vez mais um caso isolado de excelente qualidade musical, ASTROWORLD veio contrariar a tendência e, contra tudo o que era esperado, subiu ainda mais a parada.

Numa entrevista à GQ em março de 2017, Travis Scott falava sobre a origem do nome do álbum (que é uma referência ao parque de diversões Six Flags AstroWorld, localizado em Houston, cidade natal do artista): “Eles demoliram o AstroWorld para construir apartamentos. É assim que vai soar, como um parque de diversões retirado às crianças. Nós queremo-lo de volta. Queremos o parque de volta. É por isso que o estou a fazer.”. E, de facto, ASTROWORLD, assemelha-se a um dia num parque de diversões – tanto somos embalados, num êxtase sonhador, pelo movimento circular dos carrosséis, como nos deixamos levar, numa euforia descontrolada, montanha russa fora. A homenagem está também patente na capa – com direito a uma versão diurna e outra noturna – que simula a entrada do parque, numa fantástica fotografia de David LaChapelle.

Segundo Scott, ASTROWORLD é a continuação do seu álbum de estreia. Faz então sentido que este seu último disco se equipare qualitativamente ao álbum de estreia do rapper e produtor de 26 anos. Esta ligação não é clara: aquilo que se pode traçar de comum entre os dois projetos é mesmo o facto de ambos pegarem na estética já super saturada do trap e darem-lhe uma volta, quer pela imprevisibilidade da produção, quer pela escolha muitas vezes surpreendente – e sempre acertada – dos convidados. Aliás, não sendo um letrista ao nível de Denzel Curry ou Kendrick Lamar, estes sempre foram os trunfos de Travis Scott. A produção e o seu talento como curador foram o que fez de Rodeo um grande álbum e que, em 2018, transformam ASTROWORLD naquilo que é: uma excelente palette de sons refrescantes e por cima das quais, durante uma hora, Scott se vai fazendo acompanhar das pessoas necessárias para tirar o máximo partido daquilo que as camadas instrumentais oferecem, pintando músicas cheias de pormenores inesperados e beat switches que deixam a cabeça a andar à roda. Sem nunca descurar a tendência mais mainstream da sua música, Travis Scott consegue ser verdadeiramente desconcertante em certos momentos do álbum.

A faixa que abre o ASTROWORLD é um exemplo perfeito disto. “STARGAZING” entra pesada e com a voz de Scott carregada de autotune e delays delirantes, como é o seu estilo tão próprio. Contudo, quando tudo nos parece encaminhar para o final da música, dá-se uma mudança drástica e entramos a toda a velocidade no universo psicadélico de ASTROWORLD, catapultados espaço fora por um sample caleidoscópico. Seguem-se quatro fantásticas faixas que, pela forma como surgem interligadas, se assemelham quase a uma ária, fosse ASTROWORLD uma ópera de hip hop espacial. “CAROUSEL” é a primeira paragem intergalática, onde o destaque é Frank Ocean, que surge a espalhar a sua magia por cima de um instrumental hipnótico e, ainda assim, capaz de pôr estádios inteiros a saltar em euforia. Sem intervalo, segue-se “SICKO MODE”, o enorme segundo single do álbum. Aqui, as mutações e inversões estruturais são a verdadeira força motriz desta música. Em cinco minutos, Travis Scott consegue criar um épico de três partes, com Drake a surgir na primeira para depois tomar conta da casa na terceira, numa das features mais marcantes do álbum – e na qual talvez tenha feito história ao rappar (algo hilariantemente) sobre tomar Xanax de forma responsável, algo que definitivamente se distancia das referências mais comuns ao comprimido, no mundo do hip hop.

Por fim, “R.I.P. SCREW” e “STOP TRYING TO BE GOD”, duas músicas mais calmas que as anteriores, encerram este capítulo de ASTROWORLD. A primeira é uma bela homenagem ao falecido DJ Screw, um fantástico produtor de Houston (cidade natal de Scott), seminal no desenvolvimento da técnica chop and screw e do próprio som do southern hip hop. Desta feita, é Swae Lee que se junta a Travis para juntos mostrarem o seu respeito por esta figura mítica. A segunda faixa abre com um sample de um saxofone descontrolado e uma voz robótica, que depois são interrompidos pelo sussurro abençoado de Kid Cudi, que então introduz uma faixa onde Scott critica abertamente os complexos de deus que muitos artistas desenvolvem ao ficar famosos. De repente, aparentemente do nada, somos surpreendidos por um dos convidados mais inesperados do álbum: acompanhada apenas por teclados, surge a bela voz de James Blake. À medida que a canção vai caminhando para o final, juntam-se a ele Kid Cudi e Stevie Wonder e criam uma conclusão verdadeiramente bela para esta secção inicial, mais psicadélica, do álbum. Apesar disso, é evidente a permanência de uma certa sensibilidade lisérgica ao longo de todo o disco. Esta é mais evidente em faixas como a fantástica “SKELETONS” (produzida pelos australianos Tame Impala), “5% TINT”, que cresce lentamente até desembocar num esplendoroso final, ou “ASTROTHUNDER” e “COFFEE BEAN”, que encerra o álbum com um boom bap em que Travis Scott despe a sua voz de efeitos, num combo que lhe assenta estranhamente bem.

As restantes faixas no universo de ASTROWORLD acabam por ser sobretudo bangers para mandar arenas abaixo e abrir moshpits massivos; enfim, no fundo aquilo que Sheck Wes canta (acompanhado do que parece uma multidão) no refrão da super lit “NO BYSTANDERS”: “fuck the club up!”. Nesta categoria, encontramos a pesada “NC-17”, onde se consuma o terceiro encontro de Travis Scott e 21 Savage (que, na verdade, parece saída de Without Warning, o álbum de colaboração entre o rapper natural de Atlanta, Metro Boomin e Offset), ou a incendiária “WHO? WHAT!”, que junta Quavo e Takeoff dos Migos a Scott. “BUTTERFLY EFFECT”, lançada como single já no ano passado (e que só é ultrapassada em número de streams pela incontornável “goosebumps”, do segundo disco de Scott), apesar de ser uma banger excelente, acaba por destoar um pouco do resto do álbum. A nível sonoro, assemelha-se mais a Birds in the Trap Sing McKnight do que ao álbum em que se encontra inserida. Contudo, a enorme “HOUSTONFORNICATION”, que lhe sucede no alinhamento, acaba por abafar esta dissonância, mostrando novamente um Travis Scott focado em construir o seu ASTROWORLD.

E, como versatilidade também é uma das grandes armas deste artista, ainda há espaço neste disco para duas músicas pop/RnB muito orelhudas. “WAKE UP” é uma colaboração com The Weeknd, cuja voz assenta como uma luva ao instrumental que se desenrola por trás e que permite ao canadiano deixar-se levar, acabando por protagonizar uma das features mais marcantes de ASTROWORLD. A segunda é “YOSEMITE”, em que uma simples linha de guitarra e o sample de uma flauta são o motor que une Gunna e NAV a Travis Scott, numa canção quase doce – mas que inicialmente deu azo a muitos memes já que um erro de masterização (entretanto corrigido) fez com que a voz de NAV soasse muito mais baixa do que o dos restantes artistas.

ASTROWORLD é mesmo, para todos os efeitos, uma grande surpresa. É difícil chegar ao final do álbum e perceber bem como é que tudo isto foi possível: como é que se congrega deste modo sonoridades tão diferentes, como é se pega numa equipa de produção tão grande e nomes, muitas vezes, já tão batidos no cenário musical mais comercial e se faz algo que soa verdadeiramente diferente do que outros na mesma liga andam a fazer. No fundo, o segredo por trás desta proeza do hip hop moderno é revelado num verso de Scott em “SICKO MODE”: “Who put this shit together? I’m the glue”. Tão simples. E, no entanto, o resultado é este megalito musical, erguido para ser contemplado, estudado e rodado incessantemente do primeiro ao último minuto.