Passados mais de trinta anos é complicado imaginar Prince sem pose de realeza.

Vestido de roxo, com mais ou menos folhos, envolto por uma numerosa entourage, precedido por uma infindável lista de exigências, normalmente mais excêntricas que racionais, sempre distante, sempre no seu Mundo, aquele em que a internet ia morrer, onde a música não era para ser consumida em streaming, a olhar para o nosso, o dos meros mortais, com mais comiseração que desdém. A verdade é que nem sempre foi assim.

Em 1983, Prince ainda não tinha créditos amealhados para se apresentar como Sua Alteza Púrpura, ainda não tinha números de vendas que lhe permitissem escrever escravo na cara para anunciar ao Mundo uma guerra com a editora. Nessa altura ainda mal passava do miúdo de Minneapolis cujo primeiro disco, For You (1979), lhe valera simpáticas comparações – de Stevie Wonder e Smokey Robinson a Michael Jackson. Estavam longe os anos em que haveria de exigir camarins roxos de ponta a ponta, mobília selada em papel de plástico, limousines para cumprir a deslocação do camarim para o palco, ou as, mais simples, máquinas de M&M espalhadas pelos bastidores. Prince ainda não era Alteza, mas já sabia para onde caminhava. Em 1983, tinha acabado a digressão de 1999 e preparava-se para lançar o disco que lhe valeria todas as honras, Purple Rain.

Sempre avesso a regras de humanos, Prince boicotou sempre a internet. Até à sua morte, no Youtube não se encontravam mais uma dúzia dos seus vídeos, nos serviços de streaming nada se ouvia e mesmo de reedições mal se ouvia falar. Com a morte, eventualmente o mais humano dos seus atos, tudo mudou. Do arquivo ouviram-se promessas capazes de fazer sonhar os fãs, na internet começaram a surgir vídeos e até no Spotify o catálogo foi disponibilizado. Agora, a época mudou, será qualquer coisa como a que Jay Z cantou em “Caught Their Eyes”: “I sat down with Prince, eye to eye/ He told me his wishes before he died/ Now Londell McMillan [antigo advogado de Prince], he must be color blind/ They only see green from them purple eyes”.

Se a exploração dos arquivos dos heróis caídos da música raramente traz grandes surpresas, no caso de Prince a esperança é legitimada por números – foram vários os anos de boicote às editoras, sempre se soube do cofre na casa de Minneapolis, sempre se disse que o melhor estava, sempre, por mostrar. Agora, dizem os arquivistas, a dúvida não se é há canções perfeitas por desvendar, a dúvida é como as encontrar, como as divulgar, no limite, como as organizar. Do cofre, soube-se pela altura do lançamento de Prince, Piano & Microphone 1983, só cassetes são cerca de 8 mil. Depois estão as fitas, as VHS, as gravações digitais …

Deve-se a Michael Howe a edição de Prince, Piano & Microphone 1983. Contratado pela Warner depois da morte de Prince, o arquivista contou ao USA Today como descobriu a cassete. “Como fã, sabia da sua existência porque tinha circulado como bootleg entre colecionadores durante anos. Mesmo que tivesse uma qualidade de som muito abaixo da esperada, sempre gostei da emoção que tinha. Quando me tornei arquivista, era uma das gravações que queria encontrar”, contou, antes de descrever como de “detetive” o trabalho realizado. “No cofre, conseguimos reduzir as possibilidades a um número razoável. Felizmente, quando as analisámos, demos por uma que tinha a letra do Prince com o nome das canções no segundo lado, Cold Coffe and Cocaine e Why the Butterflies.”

Gravada de uma única vez, a sessão ao piano, no seu estúdio caseiro em Chanhassen, Minnesota, começa com uma breve conversa sobre o som e segue como em poucas vezes ouvimos Prince. De um lado, um medley que arranca com 17 Days, segue para uma versão crua de Purple RainStrange Relationship e onde até se ouve a Case of You de Joni Mitchell. No lado B do vinil estão as encontradas no final da cassete, as duas originais que mereceram a inscrição na caixa.

Não que surpreenda a voz de Prince, o Jazz que se lhe ouve dos dedos ou mesmo a aparente facilidade com que se passeia pelas teclas do piano. Tão pouco surpreende – pelo menos aos que já tinham vasculhado a odiada internet em busca de bootlegs – a qualidade da interpretação dos clássicos. Surpreende o tom intimista da hora e meia de disco, maravilha a sensação de que, como em poucos momentos, ali se ouve o que poucos no Mundo (até agora) terão tido oportunidade de ouvir – Prince, à vontade, sem exigências ou manias de génio, sem pose de realeza, ao piano.

Se a promessa de 8 mil cassetes por editar tiver fundamento, se em cima dessas imaginarmos gravações em fita e nos mais variados formatos digitais, não é difícil antever que os que viam o verde das notas nos olhos do génio púrpura por lá vão descobrir outras tantas pérolas. Um mal que vem por bem? Aguardemos então com calma, sem exigências ou expectativas desmesuradas, por novidades. Até lá, é aproveitar que já o podemos ouvir em streaming e, agora, até ao piano.