Mais madrugada do que noite, mais silêncio do que grito, mais peso no peito do que choro.
Do ponto de vista musical, o grunge sempre foi uma categoria problemática, um caldeirada onde coabitavam estéticas muito diversas. O que realmente unia todas aquelas bandas de Seattle era a rejeição do escapismo e artifício dos anos 80 e uma sensibilidade atormentada, a raiar a auto-destruição. O nosso Mark Lanegan foi um dos pioneiros de toda essa cena, enquanto frontman dos Screaming Trees. Se na sua obra a solo tende a recusar o fuzz do grunge em favor de texturas mais acústicas, a melancolia é a de sempre. Mas tem uma vantagem em relação a muitos dos seus amigos de Seattle: está vivo. Transformar o chumbo do sofrimento no ouro da arte é, pelos vistos, a parte fácil. O difícil mesmo é sobreviver.
Para um artista, uma vida longa é uma moeda atirada ao ar: se sai cara vem o entorpecimento criativo, se sai coroa vem a sageza da maturidade. Lanegan é um homem com sorte, apurando a sua arte no carvalho da idade. A sua voz de barítono, deixada a marinar durante anos em molho de whiskey e cigarros, vai ficando mais espessa e solene. Diz “pedra” e parece que ouvimos “montanha”, diz “água” e parece que ouvimos “mar”.
Certo dia, atravessando o oceano, encontrou a sua alma-gémea: o multi-instrumentista Duke Garwood. Em 2013, gravam juntos Black Pudding e regressam agora para mais um disco a quatro mãos. With Animals é folk, blues e escuridão, a americana mais profunda filtrada por uma sensibilidade noir moderna. Duke Garwood gravou primeiro a parte instrumental num rude gravador de cassetes de 8 pistas, ao que depois Lanegan acrescentou as suas dolentes melodias de voz.
No processo de criação, Lanegan e Garwood perguntam: quantas notas são estritamente necessárias para expressar a mais inquieta solidão? Calculado esse número, eliminam sem piedade tudo o que está a mais. Solos? Não existem. Refrães? Quase não há. Metade dos temas fica-se pelos dois minutos, e a outra metade, se é mais duradoura é porque tem mesmo que o ser. Lanegan nunca levanta a voz e, no entanto, nos seus quase sussurros há peso e gravidade.
With Animals é mais madrugada do que noite, mais silêncio do que grito, mais peso no peito do que choro. É o último cliente ao balcão, olhando para o copo vazio enquanto o barman vai empilhando as cadeiras. Culpa, espera, sombra, chuva.
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