Nefertiti mostra-se, ao comemorar meio século de vida, com a frescura e o encanto do seu nascimento. O tempo não passa pelas obras de génio! Há muito que sabíamos ser assim, mas é sempre bom confirmar certas verdades.

De um certo ponto de vista, todos os álbuns de Miles Davis são clássicos. Como também o são todos os discos de John Coltrane, Dave Brubeck, Thelonious Monk, Herbie Hancock, Donald Byrd, entre tantos outros. No entanto, Nefertiti não será tão clássico como Kind of Blue, por exemplo, ou como serão A Love SupremeTime OutBrilliant CornersTakin’ Off e Royal Flush nas discografias dos outros monstros do jazz acima referidos. Tendo como boa esta premissa inicial, e sobretudo tratando-se de Miles Davis, será fácil perceber que as sua obras pertencem a um patamar pouco humano, distante de todos os parâmetros comuns de análise, e por isso mesmo talvez seja sempre conveniente recordar, embora repetindo a formulação feita no início deste texto, que todos os álbuns de Miles Davis são, de facto, clássicos! Nas suas semelhanças, muitos deles, mas sobretudo nas suas diferenças, nas rebeldias de uns e nas atitudes de vanguarda de outros. Todos eles, em alguma medida, apontam para o futuro, encerram o desejo de transgressão. Talvez seja nesse exato ponto (o do corte, o da fuga, o da interrupção de um processo para que outro se inicie) que Nefertiti se afirme como disco incontornável na imensa obra discográfica do génio nascido em Alton, Illinois, em 1926.

Nefertiti é um “post-bop record”, embora não o primeiro da safra de Miles Davis. Recordamo-lo hoje, não apenas pelas suas virtudes, mas também pelo facto de fazer 50 anos. No entanto, o álbum inicia-se com um tema algo “enganador”. “Nefertiti”, a composição de abertura, não diz muito sobre as restantes cinco. Avança sem grandes distúrbios, sem grandes alterações melódicas, embora o ritmo vá crescendo um pouco, a espaços, meio nervoso, passando essa mesma vibração para o tema seguinte, o brilhante “Fall”, provavelmente o melhor de todo o disco. Ambas as composições são de Wayne Shorter, que ainda assina a derradeira “Pinocchio”. Em “Fall”, as linhas do seu saxofone tenor são arrepiantes, sobretudo a partir da segunda metade do tema. Meio álbum está por sua conta, como se vê. Mas, exceção feita ao mago do trompete, talvez seja Tony Williams quem mais se destaca em todo o trabalho. A bateria opera milagres em Nefertiti. Chega a ser impressionante o seu delírio rítmico, sobretudo em “Hand Jive”. Não será por mero acaso o que dizemos, uma vez que é o próprio quem assina a composição. Depois, é Herbie Hancock que entra em cena. “Madness” e “Riot” são temas seus. O primeiro é uma explosão que só acalma já perto do quinto minuto, destacando-se, a partir desse momento, o piano de Hancock. Ora mais normativo, ora mais endiabrado, é ele que passa a comandar até ao instante derradeiro. “Riot”, de forma algo diferente, começa com os seus compassos, dando de imediato lugar de destaque aos sopros, intervalando com eles o motim que dura apenas três minutos. É a composição mais curta (demasiadamente curta, na nossa opinião), até que surge a já referida “Pinocchio”, altiva e cheia de personalidade.

Parece mentira (o sublinhado tenta ser uma brincadeira com a conhecida particularidade da personagem criada por Carlo Collodi), mas Nefertiti tem mesmo meio século de existência. Parece menos, muito menos, tal a frescura e o viço que revelam. De facto, tudo isto é rigorosamente verdade pelas várias excelências que aqui se reúnem. A excelência das composições e a excelência interpretativa de quem lhes dá vida: Davis, Hancock, Shorter, Williams e Ron Carter, no baixo. Que turma! Que quinteto! Que disco!