La Folie é um disco histórico. Um álbum onde a temática do amor aparece em diversas e radicais perspetivas. Agora, tal como em 1981, vale a pena ouvir o que os The Stranglers souberam tão bem fazer.

No início dos anos oitenta, os The Stranglers já haviam percorrido um grande e sólido caminho. A crítica especializada, que tanto os enalteceu nos primeiros álbuns, olhava agora para a banda inglesa de forma reticente e desconfiada, sobretudo depois do fracasso comercial deThe Gospel According to The Meninblack , também ele saído em 1981, disco assombroso de que aqui já vos demos nota. A editora da banda, a toda poderosa EMI, tratou de assegurar Tony Visconti como produtor do novo álbum, exigindo que todo o trabalho fosse pensado como um caldeirão de hits. Gravado entre julho e setembro, La Folie viu a luz do dia a 9 de novembro de 1981, cumprindo-se, de alguma forma, o desejo dos patrões da fonográfica britânica. Do ponto de vista comercial, o álbum não se deu mal, e contribuiu para elevar os The Stranglers até patamares onde provavelmente nunca haviam estado. Tudo por via de um disco pensado para ser sobre o Amor, embora com variantes tão distintas como heroína e canibalismo. Sim, leu bem. E não se espante, uma vez que é de um trabalho de Hugh Cornwell, Jean-Jacques Burnel, Dave Greenfield e Jet Black que se trata, pelo que tudo vindo dos The Stranglers poderia perfeitamente acontecer.

equívoco não tão equívoco assim título do álbum, tem que se lhe diga. Surgiu em francês, e a sua literal tradução necessitaria de um acrescento de significação: não deveria ser entendido como “A Loucura”, mas como “A Loucura do Amor”, coisa bem diferente, como é fácil perceber. Todos os onze temas exploram diversas manifestações dessa loucura sentimental, embora assim possa não parecer. Trata-se de um álbum conceptual, portanto. Do ponto de vista temático, era então o Amor que lhe segurava as pontas, e do ponto de vista musical não fugia muito à marca registada da banda inglesa, embora menos ritmicamente agressivo do que os primeiros discos, e mais melodioso e orelhudo, mas sem se aproximar de facilitismos que a banda nunca toleraria.

Os teclados com sabor retrô (e sim, já na altura faria sentido o uso desta expressão) de Dave Greenfield abrem La Folie com forte impacto, suportado por variações rítmicas de excelência. Trata-se de “Non Stop”, enorme canção a que se segue “Everybody Loves You When You’re Dead”, bem mais punky do que a anterior, sobretudo pelo uso já mais evidente das guitarras e do baixo sempre poderoso de Jean-Jacques Burnel. “Tramp”, terceiro tema do lado A, parece mais séria e soturna do que as anteriores, e tem um poderoso refrão que se agarra a qualquer ouvido com a máxima facilidade. “Let Me Introduce You To The Family” foi um single que não obteve o desejado sucesso, mas para a história ficou o riff da guitarra de Hugh Cornwell, coisa simplesmente brilhante e poderosa. “Ain’t Nothin’ To It” é a canção menos orelhuda do disco, mas nela JJ Burnel mostra bem a sua categoria. “The Man They Love To Hate” fecha a primeira fatia de som, e transborda de energia e garra. Excelente tema, a lembrar os tempos norvegicus da banda.

O lado B abre com a fantástica “Pin Up”, tema que deveria ter chegado aos ouvidos de too o mundo, se lógica houvesse nestas coisas das canções e de quem as ouve. Pop pura, new wave séria, animada até ao tutano. Um portento! Depois vem “It Only Takes Two To Tango”, tema que melodicamente parece fazer vénia ao legado dos The Beach Boys, embora nos pareça que os Animal Collective gostem de passear os seus ouvidos por aqui. Até que surge “Golden Brown”, e imaginar uma espécie de valsa tocada pelos The Stranglers é, ainda hoje, algo que nos parece totalmente inusitado. No entanto, a canção é perfeita, mesmo sabendo nós que ela esconde, digamos assim, na sua aparente candura, um enredo que mistura os prazeres carnais do amor e o prazer (que outra palavra poderemos utilizar nesta circunstância a não ser esta, uma vez que o tema foi feito por Hugh Cornwell, Burnel e companhia?) do uso da heroína. “Golden Brown” foi, durante muitos e bons anos, o maior sucesso de vendas de singles da EMI. Curiosamente, é uma canção que pouco tem a ver com a essência da banda. O mundo é incompreensível muitas vezes, como bem sabemos… Depois, a dois passos do fim do disco, aparece “How To Find True Love And Happiness In The Present Day” e de novo as teclas de Dave Greenfield surgem a comandar o tema, onde também se nota o poder da bateria de Jet Black. Por fim, que melhor maneira de acabar o álbum com a belíssima canção que lhe dá título. No entanto, “La Folie” apresenta-nos, verdadeiramente, un amor fou, a história verídica de Issei Sagawa, que aos 27 anos foi para a Sorbonne tirar um doutoramento em literatura. Entretanto, a loucura ter-se-á apoderado do japonês, acabando por vitimar Renée Hartevelt, sua copine, em sua própria casa, onde se encontraram com o pretexto da realização de um trabalho de curso. Bastou um tiro na nuca enquanto a rapariga holandesa lia um poema em alemão, a pedido do louco assassino. Mas a história seguiu outros pérfidos caminhos. Issei Sagawa manteve relações sexuais com a jovem morta, esquartejou-a em seguida, guardou todas partes do seu corpo no frigorífico do seu apartamento, e foi-se alimentando delas durante algum tempo. Mas na verdade, quando se ouve Hugh Cornwell cantar “Il etait une fois un etudiant / Qui voulait fort, comme en littérature / Sa copine, elle était si douce / Qu’il pouvait presque, en la mangeant / Réjeter tous les vices / Repousser tou les mals / Détruire toutes beautés / Qui par ailleurs, n’avait jamais été ses complices / Parce qu’il avait la folie, oui, c’est la folie”, estamos longe de imaginar a tragédia que esses versos encerram.

La Folie é o sexto álbum de estúdio dos The Stranglers e um dos melhores discos da sua extensa discografia. Ainda hoje, passadas mais de três décadas de existência, soa maravilhosamente! Terá sido o Amor a conservá-lo assim tão bem? Pela nossa parte, e pelo enorme afeto que lhe temos, acreditamos que sim.