Um disco alquímico em tempos de férrea ditadura! Foi essa a proposta de Jorge Ben. A Tábua de Esmeraldas resistiu sem quaisquer rugas à passagem de mais de quarenta anos, garantindo, como poucos, o seu lugar na eternidade da música popular brasileira.
A cada nova audição, uma nova e revigorante surpresa! Talvez seja por força dos valores alquímicos que o álbum transmite e explica. Talvez pela filosofia convicta que o disco encerra. Ou ainda, e talvez seja mesmo esta a teoria mais acertada, porque A Tábua de Esmeraldas contém uma boa quantidade de canções superlativas, inspiradíssimas, apenas ao alcance de poucos, cheias de bom e dançante balanço. Por todas estas razões, o élepê que Jorge Ben lançou em 1974 é um trabalho que resiste à passagem do tempo. Ou, dito de outra forma mais consentânea com a “verdade sem mentira certo muito verdadeiro”, continua a ser uma das mais importantes obras musicais alguma vez feitas no Brasil. Quem se atrever a duvidar do que aqui escrevemos deveria ser sujeito a um qualquer tipo de punição cósmica, ficando para sempre condenado à surdez total e absoluta.
Comecemos pela capa, surpreendente e bonita como poucas. Não apenas bonita, mas também esclarecedora, uma vez que basta olhar para ela com um mínimo de atenção para percebermos que a Alquimia era mesmo (à época, pelo menos) um assunto que interessava ao autor do disco. Bem no centro da imagem da capa, as figuras de Nicolas Flamel (um dos primeiros alquimistas, homem que lendariamente teria criado a pedra filosofal, o elixir da vida eterna e que tinha a capacidade e o conhecimento de conseguir transmutar simples metais em ouro), bem como a primeira das quinze leis da Tábua de Esmeraldas, mítico texto escrito por Hermes Trismegisto, considerado o fundador da alquimia. Nada se esconde, portanto. Assim sendo, observar a capa (e ela é riquíssima em pormenores merecedores de atenção) é também perceber para onde vamos.
O disco, como começámos por referir, é histórico e incontornável. As suas composições são inesquecíveis. Logo a abrir a primeira face da mágica rodela (a expressão em itálico é usada propositadamente, como perceberão os mais atentos) temos “Os Alquimistas Estão Chegando Os Alquimistas”, o mais superlativo dos temas que Jorge Ben alguma vez criou, e foram muitos e muitos e muitos, como bem se sabe. Bastaria esta canção para que o álbum fosse louvado, mas na verdade estamos ainda no começo. Segue-se “O Homem da Gravata Florida”, referência a Paracelso, o “homem simpático e feliz”, médico adorado no seu tempo e importante alquimista que visitava sempre os seus pacientes com uma florida e colorida echarpe. Depois, outro dos melhores momentos do disco, o cativante “Errare Humamum Est”, cheio de “deuses astronautas”, “de deuses de outras galáxias-xias-xias” gerando como que um perpétuo eco em nós, e imagens astrais de elevada beleza lírica que nos transportam “pelas sombras sobre as estrelas-las-las-las”. Puro encanto e magia, pois claro.
Mas A Tábua de Esmeraldas realça também a beleza da mulher brasileira. “Menina Mulher da Pele Preta”, mais um hino repleto de swing dançante, reforça a ideia da presença das “moças bonitas”, como repetidamente se menciona em “Eu Vou Torcer”, assim como em “Magnólia”, que se diz que “chega na Primavera”, vindo “a caminho voando numa nave maternal doirada”. Outra canção perfeita é “Minha Teimosia, Uma Arma Pra Te Conquistar”, samba de enorme elegância, contagiante, sublime na sua cadência rítmica.
Com o samba no corpo e África sempre no coração, esse local “onde estão os homens”, Jorge Ben tem ainda tempo para homenagear a figura mítica de Zumbi dos Palmares, o grande “senhor das demandas” que Caetano Veloso, em boa hora, soube trazer de volta até aos tempos mais recentes, vinda desde os anos setenta, aterrando no seu disco do ano 2000, Noites do Norte.
Entrando no último terço do disco, o que A Tábua de Esmeraldas nos serve é ainda um prato cheio e requintado. “Brother”, cantado num inglês muito sofrível, faz-nos avançar até “O Namorado da Viúva”, canção que traz de novo (embora ela nunca estivesse totalmente ausente) a Alquimia até ao centro das nossas atenções. A razão é simples, e explica-se em duas linhas: Pernelle, mulher de apreciáveis dotes físicos e financeiros, era já viúva por três vezes, facto que afastava potenciais namorados com pretensões casadoiras, receosos de que uma qualquer espécie de maldição recaísse sobre eles. Isso não dissuadiu Nicolas Flamel, que com ela acabou por se casar. Segue-se a lindíssima e muito alquímica “Hermes Trismegisto e a Sua Celeste Tábua de Esmeralda”, canção que explica, através de uma letra bastante inspirada, o início de tudo o que é relativo à prática da ciência mística que todo o disco convoca. Para o fim, “Cinco Minutos (5 minutos)”, elegante canção de um amor triste vindo de alguém que pede ao seu amor para esperar apenas uma mão cheia de minutos, coisa que acabou por não acontecer.
É assim esta imensa e bem recheada Tábua. No tempo em que a ditadura militar ditava fortes regras no nosso país irmão, Jorge Ben deixava de lado quaisquer outras preocupações e resolvia avançar para estúdio com a vontade de gravar um disco de orientação filosófica. Como seria de esperar, e mesmo apesar do músico ser já um nome de respeito no espaço da sempre crescente émepêbê, a gravadora Philips começou por torcer o nariz à pretensão do bom e simpático carioca. No entanto, André Midani, nome importante do mercado fotográfico brasileiro, resolveu o impasse, permitindo que o disco fosse efetivamente gravado. O resto, como se sabe, é história. E nessa, na história maiúscula dos grandes e incontornáveis discos da música popular brasileira, A Tábua de Esmeraldas tem lugar destacado e garantido. Mas não só. No Altamont também tem, como acabou de se comprovar.
Sem comentários:
Enviar um comentário