sábado, 4 de janeiro de 2025

Discografias Comentadas: Bruce Springsteen – Parte II

 


Após a “Tunnel of Love Express Tour”, a fim de promover o álbum Tunnel of Love, e de ser o headliner de uma turnê patrocinada pela Anistia Internacional, incluindo sua única passagem pelo Brasil, em outubro de 1988, a E Street Band foi dissolvida em novembro de 1989. Teve início assim uma fase distinta da carreira de Springsteen, gravando e se apresentando com outros músicos, mas sem jamais perder sua relevância e qualidade. Na primeira parte dessa discografia comentada, abordei seus álbuns lançados nos anos 70 e 80. Continuando, apresento aqui seus discos lançados nas duas décadas seguintes, desde o lançamento simultâneo dos álbuns Human Touch e Lucky Town até o mais recente, The Promise.
Human Touch [1992]
Tendo dispensado a E Street Band, exceto sua agora esposa Patti Scialfa e o pianista/tecladista Roy Bittan, Bruce começou a trabalhar com outros músicos, incluindo os super requisitados Randy Jackson (baixo – Journey, Jon Bon Jovi, Michael Bolton, Mariah Carey, etc.) e Jeff Porcaro (bateria – Toto, Michael Jackson, Steely Dan, Boz Scaggs, etc.), em sessões que deveriam resultar em um álbum a ser lançado em 1990. Contudo, o projeto foi deixado de lado e retomado apenas em meados de 1991, junto a alguns músicos diferentes. A intenção, que a princípio era de registrar apenas mais uma faixa, acabou gerando material suficiente para outro disco. Dessa maneira, em 31 março de 1992, foram lançados simultaneamente Human Touch e Lucky Town, em mais um movimento ousado em sua carreira. Apesar de bem sucedidos a princípio, os álbuns acabariam por se configurar como pontos baixos em sua carreira, tanto comercial quanto artisticamente. Em parte, concordo com isso, mas é inegável que ambos são portadores de muita qualidade. Focando primeiramente em Human Touch, sua faixa-título entra certamente para o hall de suas melhores composições, destacando o toque elegantemente característico do genial Jeff Porcaro, músico que ajudou a definir o papel da bateria na música pop. A produção cristalina e a execução mais racional emprestam um caráter AOR ao disco, fato que se permeia pela maior parte do track list. “Soul Driver” é uma de suas mais subestimadas obras, contando com a participação do antigo membro da E Street Band David Sancious no órgão hammond, que trabalha em simbiose perfeita com a guitarra de Springsteen. Contando apenas com Bruce na voz e no baixo, além de teclados e alguma percussão, “57 Channels (And Nothin’ On) é uma música totalmente atípica, com vocais quase falados. “With Every Wish” e a canção tradicional “Pony Boy” remetem ao Bruce extremamente influenciado por Bob Dylan, mas o track list é dominado por faixas como “Gloria’s Eyes”, “Real World”, “The Long Goodbye” e “Real Man”, retratando um Springsteen menos disposto a carregar o fardo do sofrimento de todo o mundo sobre seus ombros, exibindo um otimismo nunca visto antes, reflexo de sua situação à época, recém-casado e com dois filhos pequenos. Além de “Human Touch” e “Soul Driver”, também destaco “Roll of the Dice”, outra com um forte tempero AOR, conduzida pelos teclados de Roy Bittan, “Man’s Job”, que conta com os backing vocals de Sam Moore, do duo de rhythm ‘n’ blues Sam & Dave, e “I Wish I Were Blind”, remetendo um pouco à temática de Tunnel of Love, contudo mais simplista.
Lucky Town [1992]
É difícil precisar, entre Human Touch e Lucky Town, qual consiste em um ajuntamento mais coeso de músicas. Apesar das canções terem sido registradas em sessões distintas e com alguns músicos diferentes, caso da bateria, aqui empunhada por Gary Mallaber, existem muito mais pontos em comum do que discrepâncias entre os dois discos. A principal semelhança é a temática diversa retratada em ambos, mostrando Springsteen um pouco mais afastado dos personagens presentes em sua música. Quando há uma aproximação, ocorre de maneira mais otimista, caso de “Better Days”, excelente faixa de abertura, dona de uma pegada hardeira e de backing vocals femininos. Talvez a diferença mais perceptível em relação a Human Touch, e mesmo assim para quem está muito habituado a prestar atenção em sua voz, é a performance vocal um pouco mais agressiva de Bruce, característica presente em um dos grandes destaques do álbum, “Living Proof”, afastando um pouco a aura AOR de Human Touch. Mesmo assim, é inegável que faixas como a ótima “Leap of Faith”, além de “Local Hero” e da faixa título, possuem muito em comum com o disco “gêmeo”. As baladas “If I Should Fall Behind” e “My Beautiful Reward” são outros testamentos de que essa fase da carreira do Boss é sim recheada de bons momentos.

The Ghost of Tom Joad [1995]

Após uma breve reunião com a E Street Band a fim de registrar algumas faixas novas para o lançamento da coletânea Greatest Hits (1995), repercutindo o sucesso de “Streets of Philadelphia”, trilha do filme “Philadelphia” (1993) e ganhadora de um prêmio Oscar e quatro prêmios Grammy, Bruce resolveu dar o mesmo passo que dera 13 anos antes em Nebraska, com a diferença que, dessa vez, houve premeditação. Apesar de algumas participações externas, pode-se considerar The Ghost of Tom Joad um álbum totalmente solo. Mesmo que algumas músicas aqui sejam um pouco mais encorpadas que em Nebraska, o clima passado é ainda mais soturno, especialmente pois a capacidade de Springsteen em contar histórias está mais aperfeiçoada aqui. O fato das narrativas se desenvolverem quase que totalmente em primeira pessoa empresta nuances de realidade jamais observadas previamente em sua carreira, em especial pois os temas abordados aqui são cruamente reais. The Ghost of Tom Joad é um disco político, amargo. A brilhante faixa-título, inspirada no livro “As Vinhas da Ira”, de John Steinbeck, lembra que a próspera era Bill Clinton não era tão próspera assim, manifestando o grito dos imigrantes e desempregados, principais personagens incorporados por Springsteen no álbum. Minha favorita é “Youngstown”, que versa sobre a decadência da industrialização na cidade que dá título à faixa. Em turnês posteriores, já com a E Street Band, essa música seria executada em uma diferente e poderosa versão, configurando-se como um dos destaques dos concertos. Apesar do formato adotado no álbum, predominantemente com voz e violão, além de ocasionais linhas de baixo, teclados, violino, harmônica e acordeão ter sido bem recebido em 1982, quando do lançamento de Nebraska, dessa vez ele suscitou algumas críticas devido à rara presença de melodias vocais memoráveis, resultado da adoção de uma linha folk quase falada em diversos momentos, em outros, sussurrada. Apontar mais destaques é quase inútil, dado que se trata de um disco bastante equilibrado, apesar de extremamente hermético, de dificílima digestão. Ouça com o encarte na mão, acompanhando as letras.

Tracks [1998]

Para que não tornemos maçantes e tão longas nossas discografias comentadas, optamos por não abordar álbuns ao vivo e coletâneas. Mas tive que abrir uma exceção para Tracks, devido à atitude exemplar demonstrada por Bruce ao lançar esse material, que reúne 66 faixas em quatro discos. Desde as sessões para Darkness on the Edge of Town, a quantidade de músicas compostas passou a superar em muito as necessárias para completar um álbum, resultando em um excesso de canções muitas vezes totalmente trabalhadas junto à banda, mas que nunca veriam a luz do dia. Ao invés de, ao relançar seus álbuns antigos, incluí-las como bônus, obrigando os fãs a comprarem novamente discos que já possuíam, Springsteen juntou parte (veja bem, eu disse PARTE) dessas músicas em uma coletânea e disponibilizou uma grande quantidade de material que transborda qualidade. Engana-se quem pensa que essas gravações não entraram em discos anteriores por serem mais fracas que as que foram registradas oficialmente. Mesmo não lançando discos essencialmente conceituais, ao menos da maneira com a qual estamos acostumados, desde os anos 70 Bruce sempre teve muito presente a ideia de um tema central, um tom, um clima para cada um de seus álbuns. Não importava quão boa a canção fosse, se ela não se encaixasse, não entrava. Tendo isso em mente, é mais fácil entender o porquê de músicas como a triste balada “Iceman” não terem entrado em disco algum. “Restless Nights”, “Roulette”, “Doll House” e “Where the Bands Are” são diretos e energéticos rocks que só não fizeram parte do já longo track list de The River devido ao eterno perfeccionismo do artista e sua obsessão por criar um fundo temático pelo qual a sequência de seus discos se desvela. Não à toa muitas das canções presentes em Tracks já faziam parte dos shows de Springsteen no decorrer dos anos e ainda ocupariam posição importante em turnês posteriores, como “My Love Will Not Let You Down”, que seria abertura de muitos shows na reunião da E Street Band ocorrida em 1999. E por aí vai, em um track list formado especialmente por sobras das sessões para os álbuns Darkness on the Edge of TownThe RiverBorn in the USA e Human Touch. A omissão mais criminosa presente em Tracks provavelmente é a tocante balada “Sad Eyes”, registrada em 1990. Tanto que ela acabou sendo lançada como single em 1999, inclusive com direito a um videoclipe, que infelizmente teve pouquíssima divulgação. Tracks é um exemplo de respeito aos fãs e seus bolsos!

The Rising [2002]

É inegável o impacto que os atentados terroristas ocorridos em 11 de setembro de 2001 acarretaram em uma porção gigantesca da população, não apenas a norte-americana. Na classe artística isso não foi diferente, resultando em trabalhos de diferentes níveis de qualidade. Em Bruce Springsteen, a repercussão que isso teve funcionou como um catalisador para registrar o primeiro álbum com a E Street Band desde 1984. Não apenas isso, trata-se de seu melhor disco desde então, época de Born in the USA. Engana-se quem pensa que encontrará aqui demonstrações de patriotismo barato e apoio a causas políticas. Mesmo o mais xenófobo e/ou anti-americano tem chances de se emocionar com as canções de The Rising, que focam, mais que na tragédia, nas relações humanas decorrentes ou atingidas pelas consequências dos atentados. Cada canção estabelece um estado de espírito que é refletido nas letras, enquanto Bruce incorpora como nunca os personagens aqui presentes. Cidadãos comuns: bombeiros que perderam sua vida salvando outras pessoas, gente que perdeu entes queridos… Comuns, mas únicos em suas demonstrações de coragem e afeto. A música em The Rising injeta ânimo (“Countin’ on a Miracle”“The Rising”), reflete a tragédia (“Lonesome Day”, “Into the Fire”, “My City of Ruins”) e suas implicações nas relações humanas (“Empty Sky”, “You’re Missing”), mas também oferece alento através do amor e da amizade (“Mary’s Place”, “Let’s Be Friends”), antevendo um futuro mais promissor (“Waitin’ on a Sunny Day”). A E Street band está azeitada como nunca, tocando sem excessos, incorporando toda a garra que um disco desses pede. Quem quer saber o porquê de Springsteen suscitar uma adoração por vezes tão apaixonada tem em The Rising a melhor amostra. Para mim, trata-se do melhor disco produzido na década passada, recheado de verdade e humanidade.


Devils & Dust [2005]

Parece que, em cada década, Springsteen sente a necessidade de escancarar em forma de música as mazelas que nem o país mais poderoso do mundo consegue apagar, como se isso fosse uma resposta não apenas a seus fãs, predominantemente da classe trabalhadora, mas a um chamado moral de sua própria consciência. Formado em parte por material que já havia sido composto e inclusive apresentado ao vivo anteriormente, Devils & Dust segue uma fórmula semelhante à de Nebraska e The Ghost of Tom Joad, mostrando uma sensibilidade melódica mais identificada com o primeiro e letras mais próximas da realidade como no segundo. As histórias aqui apresentadas passam pela Guerra do Iraque (“Devils & Dust”), pela temática rural (“Black Cowboys”, “Silver Palomino”), questões relacionadas a imigrantes (“Matamoros Banks”), até uma reflexão sobre a paternidade através da figura de Cristo (“Jesus Was an Only Son”). Uma de suas letras mais gráficas está presente aqui, na forma de “Reno”, que descreve o ato sexual de um angustiado homem com uma prostituta. Algumas das faixas presentes em Devils & Dust contam com a presença mais forte de instrumentação em relação aos outros dois discos que adotaram esse formato, caso de “All the Way Home”, “Long Time Comin'” e “Maria’s Bed”. No entanto, isso não torna o álbum mais facilmente palatável, requerendo ouvidos bastante dedicados. Você não encontrará Devils & Dust no shuffle de iPod algum, isso eu garanto.

We Shall Overcome: The Seeger Sessions [2006]

Em 1997, Bruce havia gravado uma versão para “We Shall Overcome”, canção de protesto de origem gospel popularizada pelo músico folk Pete Seeger, a fim de fazer parte de um tributo ao artista. Em 2005 a ideia de homenagear Seeger renasceu, levando à convocação de diversos músicos pouco conhecidos da área de New Jersey para registrar, em apenas duas sessões, diversas músicas folclóricas compostas ou popularizadas por Pete Seeger. Gravado totalmente ao vivo, com pouco ou nenhum ensaio, o disco traz uma vibração completamente diferente de qualquer coisa que Bruce havia feito em sua carreira. We Shall Overcome soa fresco, displicente e espontâneo, usando as composições aqui presentes não como uma cartilha a ser seguida à risca, mas como ferramentas para explorar essa nova faceta de sua musicalidade. O projeto deu tão certo que Springsteen colocou na estrada a banda que gravou o disco, mesmo com a grande quantidade de músicos (podia chegar a 20), algo que normalmente inviabilizaria uma turnê. De folks que remetem ao século XIX, caso da animada “Old Dan Tucker” e de “Shenandoah”, até canções gospel com caráter de protesto, como a faixa-título e “Jacob’s Ladder”, o único disco de covers do Boss é um vencedor. Mesmo quem não possui interesse algum pela música tradicional norte-americana, seja folk, country ou bluegrass, tem grande chance de se empolgar com uma faixa como “John Henry”, que esbanja muito mais energia que a grande maioria dos discos de rock feitos hoje em dia. We Shall Overcome reforça a ideia de que não existe território pelo qual Springsteen não possa passear com facilidade.

Magic [2007]

Dessa vez a separação da E Street Band nos estúdios durou muito menos, e, cinco anos após The Rising, Bruce voltou com um álbum no formato elétrico, o mais eclético desde a época de Human Touch/Lucky Town. Isso se reflete nas letras, que trazem menos referências em comum se comparadas com discos anteriores. Isso acabou por trazer uma ênfase na construção em separado de cada faixa, tornando Magic um álbum bastante variado. Aqui se encontra desde um hard rock moderno como “Radio Nowhere” até a vibração intimista da faixa-título e sua delicada instrumentação, passando pelo irresistível pop de “Girls in Their Summer Clothes”“Long Walk Home”, que já havia sido executada ao vivo na turnê para We Shall Overcome, é o grande destaque do disco, digna de figurar ao lado das melancólicas canções presentes em Darkness on the Edge of Town, mas com um elemento reflexivo que só a maturidade pode trazer. “Last to Die” e “Gypsy Biker” revolvem ao redor da várias vezes explorada mas sempre atual temática de guerra. Springsteen não cansa de nos surpreender, sempre apresentando algo novo mesmo em seus álbuns ditos “tradicionais”; aqui temos “Devil’s Arcade” e seu andamento baseado em arranjos de violoncelo, seguindo as belas linhas vocais de Bruce. Certamente uma canção única em seu catálogo. Magic pode não mostrar o mesmo tesão de tocar presente em The Rising, mas manteve em alta o trabalho de Bruce em sua década mais prolífica.

Working on a Dream [2009]

Esse verdadeiro dínamo de músicas que é Bruce Springsteen não descansou após a turnê para Magic, registrando, novamente com a E Street Band, um álbum variado, na mesma veia  do antecessor, mas com um feeling muito mais positivo em quase todo seu track list. “Outlaw Pete” abre o disco marcando a presença do primeiro épico produzido em décadas, formato que estava deixado de lado desde The River. Apesar das fortes influências country, também presentes na letra, “Outlaw Pete” passa longe de ser uma canção em formato arcaico, soando fresca e atual. O clima de empolgação presente no grupo na época é algo que Bruce queria captar durante as sessões de gravação, algo que foi transposto com fidelidade e se reflete em músicas como a rocker “My Lucky Day”, na balada que dá nome ao disco e em “What Love Can Do”. “Queen of the Supermarket” remete ao Springsteen de The River, mas com os dois pés fincados no presente, constituindo um destaque óbvio, enquanto “Tomorrow Never Knows” revisita as influências explicitadas em We Shall Overcome. Assim como em Magic, o pop mais simples e grudento tem espaço, caso da alegre e excelente “Surprise, Surprise” e da muito bem arranjada “This Life”. O organista Danny Federici, membro da E Street Band desde 1973, oferece aqui sua última performance antes de sua morte, ocorrida em abril de 2008, e recebe uma justa homenagem em “The Last Carnival”, faixa que remete a “Wild Billy’s Circus Story”, presente em The Wild, The Innocent & The E Street Shuffle. A faixa-bônus, “The Wrestler”, merece menção pois, como música-tema do filme de mesmo nome (“O Lutador” no Brasil), ganhou um prêmio Globo de Ouro e gerou um grande choque ao ser ignorada na lista das indicadas para o Oscar 2009.

The Promise [2010]

O disco mais recente de Bruce Springsteen pouco tem de novo. Se em Tracks muitas excelentes gravações deixadas de lado em nome da unidade dos álbuns viram a luz do dia, em The Promise esse conceito foi expandido. Resultado de um projeto que resgatou a história das múltiplas e longas sessões de gravação para o álbum Darkness on the Edge of Town, aqui estão presentes 21 canções que, ou não acabaram fazendo parte do lançamento em questão por não se encaixarem no contexto temático ou apareceriam posteriormente em versões diferentes. Também há o caso de “Fire” e “Because the Night”, que foram passadas adiante, respectivamente, para o grupo vocal feminino The Pointer Sisters e para a cantora Patti Smith. Ambas foram grandes sucessos na época, antes mesmo de Springsteen ter um hit em sua própria carreira. Muitas das canções que constam de The Promise já haviam sido executadas ao vivo em diversas turnês ao longo dos anos, em diferentes formatos, caso das supracitadas e de várias outras, como a excelente faixa-título, que, se presente em Darkness on the Edge of Town, deixaria o álbum ainda mais brilhante, especialmente por não fugir da temática nele explorada. Musicalmente, o material aqui apresentado não destoa daquele que foi oficialmente lançado na época, mostrando que a escolha por deixá-las de lado não ocorreu devido a uma possível qualidade inferior. “Racing in the Street” e “Candy’s Room” (aqui ainda com seu título provisório, “Candy’s Boy”) aparecem em versões substancialmente diferentes das que entraram em Darkness on the Edge of Town, exemplificando o fato de Bruce sempre ter em mente letras e instrumentações distintas para a mesma canção. The Promise é prova irrefutável do compromisso de um artista para com a honestidade que brota de sua música, muito mais importante que qualquer sucesso comercial.

Os 10 melhores álbuns dos Talking Heads classificados

 

Na década de 1970, David Byrne, Tina Weymouth e Chris Frantz se conheceram como estudantes na Rhode Island School of Design. Depois de se mudarem juntos para Nova York e se apaixonarem por sua cena musical crescente, eles assinaram com a Sire e ganharam alguns novos membros na forma de Jonathan Richman e Jerry Harrison. Assim começou uma carreira curta, mas gloriosa, que produziria alguns dos melhores álbuns do século XX. Amplamente considerada uma das bandas mais inovadoras e influentes a surgir da cena punk de Nova York, Talking Heads era uma banda que conseguia misturar R&B com funk, Afrobeat com pop, e não errar no processo. Experimentais, criativos e muito legais para a escola, eles conseguiram o notável, alcançando enorme popularidade e ainda sendo os queridinhos dos críticos. Aqui, classificamos os 10 melhores álbuns do Talking Heads de todos os tempos.

10. True Stories

David Byrne repetidamente descartou “True Stories” como um erro. Se for, é aceitável. Criado como um acompanhamento para o filme de mesmo nome dirigido por Byrne, o álbum narra a vida e os tempos dos personagens peculiares de uma pequena cidade fictícia no Texas enquanto eles se preparam para o festival do sesquicentenário da cidade. O álbum não está isento de falhas — algumas das faixas são mais preenchimento do que suspense, e a produção habilidosa deixa muito a desejar — mas também não está isento de destaques. “Wild, Wild Life” tem mais vigor do que Tigger. “Love for Sale” é Byrne no seu melhor. “Radio Head” pode não ter sutileza, mas inspirou o nome de outra grande banda, então vamos deixá-lo em paz. No final das contas, não é uma obra-prima. Mas também não é um erro.

9. Stop Making Sense



“The Name of This Band Is Talking Heads” pode ter sido o melhor álbum ao vivo do Talking Heads, mas “Stop Making Sense” também não deixou de ter seus méritos. Byrne raramente soou com uma voz mais fina, particularmente em faixas como “Psycho Killer” e “Take Me to the River”.

8. The Name of This Band Is Talking Heads

“The Name of This Band Is Talking Heads” foi o primeiro álbum ao vivo do Talking Heads, e o melhor deles. Lançado em 1982, o álbum nos leva em uma jornada de 1977 a 1979, um período de imenso crescimento profissional e pessoal para a banda que é capturado lindamente nessas gravações ao vivo. Faixas de destaque incluem uma versão bem antiga de “Air” e uma igualmente fantástica (e muito funky) “Houses in Motion”.

7. More Songs About Buildings and Food


Como diz a All Music , os álbuns do segundo ano podem muitas vezes acabar sendo uma mistura decepcionante de músicas não usadas em um primeiro LP e material novo escrito às pressas. Embora o título do segundo álbum do Talking Head aborde esse problema, é mais com uma piscadela do que com um aceno. Com o produtor Brian Eno envolvido para adicionar um pouco de coesão, a ênfase mudou de Byrne para a parceria de baixo e bateria de Tina Weymouth e Chris Frantz. O resultado é dançante, audível e completamente desprovido de quaisquer sinais de síndrome do segundo álbum.

6. Naked

Como diz ultimateclassicrock.com , "Quando as coisas estão ficando tensas, traga músicos extras - pergunte aos Beatles." Funcionou para eles e funcionou para o Talking Heads em seu álbum final. Em 1988, o Talking Heads ainda estava se falando, mas as coisas estavam ficando tensas. Para ajudar a amenizar as coisas, eles trouxeram um caminhão de outros músicos (mais de 30 no total, incluindo Johnny Marr do The Smiths) para ajudar a gravar "Naked". O resultado é um álbum ambicioso e completo com mais brilho do que uma árvore de Natal. Divertido, animado e destacado pelas letras tipicamente espirituosas de Byrne, foi uma ótima maneira da banda se despedir.

5. Talking Heads: 77


Em 1977, o Talking Heads lançou seu primeiro álbum de estúdio, “Talking Heads: 77”. Não foi um grande sucesso. A gravadora pode ter falado muito deles nos meses que antecederam o lançamento, mas essa foi uma banda que levou um tempo para se ajustar. Os gritos de falsete e estrangulados de Byrne, as mudanças repentinas de ritmo, as letras desconectadas, a afinação estranha da guitarra... era muita coisa para lidar e, em 1977, as pessoas não tinham certeza se conseguiriam. Mas, com a retrospectiva, vêm os benefícios. Ouvindo o álbum de novo, a peculiaridade e a criatividade da banda são algo maravilhoso. Se você perdeu ou descartou na primeira vez, agora é a hora de consertar as coisas.

4. Speaking In Tongues

 Após a saída do produtor Brian Eno e o estresse de lançar 4 álbuns em menos de 4 anos, o Talking Heads decidiu que precisava de uma pequena pausa. Acabou durando 3 anos. Em 1982, eles quebraram o hiato com "Speaking In Tongues". Foi seu álbum de maior sucesso comercial até aquele momento. O que quer que a banda estivesse fazendo nas férias, claramente os deixou muito mais confortáveis ​​com a cultura pop. "Speaking In Tongues" pode não ter levado o Talking Heads ao mainstream (nada jamais faria ou poderia), mas os levou o mais perto disso que eles jamais chegariam.

3. Little Creatures

 

“Little Creatures” de 1985 não é perfeito. A produção superestilizada dos anos 80 cuida disso. Mas ainda é surpreendente. Inspirado pela recente turnê da banda pela América, Byrne mergulha fundo na cultura americana e não olha para trás. A adição de guitarras de aço e acordeões em faixas como “Creatures of Love” e “Road to Nowhere” é um golpe de mestre. “Stay Up Late” pode muito bem ser a maior conquista lírica de Byrne de todos os tempos – “The Lady Don't Mind” não fica muito atrás. É estranho, maravilhoso e muito Talking Heads.

2. Fear of Music


“Fear of Music” foi o terceiro álbum da banda e o mais coeso até aquele momento. Foi também o mais sombrio, com as letras de Byrne nos apresentando a todos os tipos de psicopatas e misantropos. Brian Eno estava de volta ao trabalho de produção, adicionando algumas sobreposições eletrônicas de assinatura para aumentar as credenciais disco do álbum. Era inteligente, estranho e todo tipo de maravilhoso. Era uma pena que seria eclipsado tão cedo por nossa próxima entrada.

1. Remain in Light

 

A GQ descreve “Remain in Light” como o álbum que redefiniu a música. Pode muito bem ter sido. A adição de alguns músicos extras expandiu o som do quarteto mais do que nunca. Loops eletrônicos definiram a base para cada música, com funk e rock em camadas no topo. Em alguns pontos, sintetizadores até entraram em ação. As letras de Byrne eram tão sombrias e carismáticas como sempre, assim como seus vocais. Simplificando, foi uma obra-prima

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

John Williams “Jaws – Music From The Original Motion Picture Soundtrack” (1975)

 O filme “Tubarão”, de Steven Spielberg, chegou às salas de cinema a 20 de junho de 1975. Para a criação de uma banda sonora (que faria história) o realizador chamou John Williams, com quem tinha já trabalhado uma vez. Daí em diante raramente se separaram. 

A cena mostra um ambiente tranquilo. Há uma festa na praia, mas uma rapariga levanta-se, afasta-se, entra na água. O rapaz que a acompanhava, já com uns copos a mais, acaba por perder os sentidos na areia. Mas é na tranquilidade de um mergulho sob o luar que uma sensação de angústia começa a emergir… Não vemos ainda nada que possa comportar perigo… Mas a música sugere que algo se aproxima… Uma ameaça. E que em poucos segundos lança o tom, não apenas do filme mas da banda sonora que o acompanha. O ano era o de 1975 e se, com Jaws (entre nós estreado como Tubarão), Steven Spielberg assinou – sem o esperar – o primeiro episódio de um novo cinema capaz de grandes feitos de bilheteira (blockbuster seria o termo usado), ao mesmo tempo John Williams não só ganhava um primeiro Óscar pela sua música (já tinha um, mas decorrera de um trabalho de adaptação de um musical ao grande ecrã) como firmava um relacionamento com o realizador que, desde então, salvo em raríssimas exceções, não seria quebrado.

         Jaws chegou às salas de cinema a 20 de junho de 1975. O filme contava a história da intrusão de um grande tubarão branco nas águas de uma ilha cuja economia dependia dos veraneantes. E, de certa forma, a primeira parte da narrativa reflete o modo como o poder (político e económico) por vezes lida mal com as questões de zelo pela saúde pública… Ressonância curiosa 45 anos depois…

         Steven Spielberg tinha já assinado algumas experiências para televisão (como o telefilme Duel, de 1971) e feito a sua estreia no cinema com Sugarland Express (1974), filme ao qual chamara a colaboração de John Williams, compositor que por esses dias era já um nome oscarizado pelo trabalho em Um Violino no Telhado. Para a música de Tubarão propôs várias ideias, uma delas aquele momento (hoje célebre), desenhado apenas para duas notas em alternância, que começou até por fazer o realizador rir, até que deu razão ao compositor. Se esse leitmotiv definia as sugestões de ameaça (um pouco o fazia a música de Bernard Herrmann ao serviço dos momentos de tensão no cinema de Hitchcock), por outro a construção da restante banda sonora ora explorava esse músculo com toda a orquestra (aqui piscando o olho a Stravinsky) ora contemplava um certo lirismo “oceânico”, como o fizera Debussy em La Mer.

         O filme desencadeou uma reação de entusiasmo tal que gerou uma bilheteira que superou em largas vezes os nove milhões de dólares investidos (há números que apontam para 450 milhões de lucro). Entre os casos de sucesso gerados pelo filme estão, além da bilheteira, os triunfos nos domínios do merchandising e, claro está, a edição em disco da banda sonora de John Williams. O álbum original incluía apenas parte da música composta e gravada para o filme. Pelo que só encontramos a totalidade da contribuição de John Williams para o filme numa reedição lançada em CD pela Decca no ano 2000.

         Confirmação plena da ligação antes estabelecida em Sugarland Express, o sucesso de Jaws garantiu a John Williams a sua ligação a outros projetos de Spielbergb nos quais a música voltou a ter um papel fulcral, seja nas “fanfarras” que deram vida à figura de Indiana Jones ou aos vários capítulos da série Parque Jurássico ou em filmes como Encontros Imediatos de Terceiro Grau (1977), E.T. – O Extraterrestre (1982) , A Lista de Schindler (1994), estes dois últimos tendo-lhe valido mais dois Óscares. De resto, fora da colaboração com Spielberg, o compositor veterano (que já somou 52 nomeações para os prémios da Academia) venceu Óscares ora na adaptação de Um Violino no Telhado ou em A Guerra das Estrelas (1977), de George Lucas.





Mychael Danna “Exotica – Original Motion Picture Soundtrack” (1994)

 Quarta colaboração entre o compositor Mychael Danna e o realizador Atom Egoyan, o filme “Exotica” deu ao músico canadiano a sua primeira edição em disco num catálogo com dimensão internacional. 

Compositor canadiano, Mychael Danna cruzou-se com a obra de Atom Egoyan em 1987 logo por ocasião de Family Viewing, a segunda longa-metragem do realizador, nascendo aí um entendimento que renovou a parceria em várias ocasiões. Depois de uma pontual interrupção em The Calendar (1993), o filme seguinte voltou a juntá-los correspondendo a colaboração a um dos primeiros casos de maior reconhecimento que Mychael Danna conheceu nessa etapa inicial do seu percurso profissional, valendo-lhe inclusivamente uma edição em disco através do catálogo da Varèse Saraband, um dos mais ativos no universo da música para cinema nesses anos de projeção global do mercado do CD (o disco nunca teve edição em vinil).  

         Estreado em 1994, com uma narrativa centrada em volta de um clube de strip, Exotica não só chamou atenções para o cinema de Egoyan como, cativou a curiosidade de muitos para o modo como a música que se escutava ao longo do filme cruzar universos estéticos e geográficos, mesmo que não tivessem qualquer relação umbilical com a ação. Casado com uma mulher de ascendência indiana, Mychael Danna tinha já explorado no seu álbum de estúdio Sirens (de 1991) a possibilidade de diálogo entre ecos da música da Índia e as possibilidades da música criada com recurso a eletrónicas. Em Exotica levaria essa relação mais longe explorando não apenas instrumentação e métodos de produção mas também uma paleta de batidas que aproximavam a sua abordagem aos espaços de diálogo que, ao mesmo tempo, mas em cenário londrino, revelavam nomes como os Transglobal Underground, Talvin Singh, Loop Guru ou Fun-Da-Mental.

         Apesar de alguns momentos de música incidental (necessária para intantes concretos do filme) se afastarem desta lógica de cruamento, faixas como o tema do genérico, Dilko Tamay Huay (na verdade um ghazal composto em colaboração com Bal Swaroop Rahi), Inside Me, Pagan Song, A Little Touch ou Mujay Yaad aproximam estas experiências mais dos terrenos de inspiração mais próxima de Bollywood que um Bally Sagoo ou Jolee Mukherjee então desenhavam. Estas afinidades podem dever-se ao facto de Mychael Danna ter gravado a banda sonora de Exotica entre Toronto e Bombaim, abrindo um espaço de trabalho a que regressaria depois em filmes como Kama Sutra: Uma História de Amor (1996) e Casamento Debaixo de Chuva (2001), ambos de de Mira Nair.




The New American Orchestra “Blade Runner” (1982)

 Criada por Vangelis para o filme de 1982 de Ridley Scott, a música de “Blande Runner” começou por conhecer em disco uma versão com apenas alguns excertos do que se escutava no ecrã. Mais recentemente o próprio Vangelis gravou a sua versão em disco. 

O ano é o de 2019… Parecia distante quando em 1982 o filme surgiu nos ecrãs e a sua visão algo distópica de uma Los Angeles onde os néones sugerem sonhos quase impossíveis entre uma cidade sob incessante chuva tinha aquele ar de ameaça, embora distante. Tal como há não muito tempo nos aproximámos do 1999 em que vimos (em Espaço 1999) a Lua a ter uma base habitada ou do ano 2001 que acolheria uma missão a Júpiter (numa visão conjunta de Kubrick e Arthur C. Clarke), também o 2019 que Blade Runner: Perigo Iminente, de Ridley Scott – baseado no conto Do Androids Dream of Electric Sheep?, de Philip K. Dick –, inscreveu no calendário da nossa história futura ficcionada se aproxima sem que muito do que ali vemos esteja materializado. Uma vez mais há que ter em conta que a ficção científica não é uma arte divinatória nem procura fazer previsões. Fala, antes, e sempre, de nós, do que somos, do tempo em que vivemos, mesmo que use outros tempos, gentes e lugares para explorar os nossos sonhos e, sobretudo, os medos.

Em tempos cheguei a descrever Eldon Tyrell (uma das personagens secundárias, mas de ação central no filme) como uma espécie de Gepeto do século XXI. Mas em vez de ter uma loja de brinquedos e, nela, um boneco cujo nariz cresce quando mente, criou uma corporação colossal com implicações na economia da Terra e dos novos mundos colonizados. Uma das suas mais importantes contribuições para o estado das coisas nesse mundo global e transplanetário são os chamados replicants, seres em tudo idênticos a nós, humanos, mas com maior desenvoltura física e mais vastas capacidades intelectuais, desenhados segundo as funções a que são destinados, de forças militares a objetos de prazer. O seu maior senão é um tempo de vida, que se limita a quatro anos a contar a partir do momento em que são ativados. Mas tal como lembramos na história de Pinóquio, chegou um dia em que os replicants também desejaram ser humanos (ao fim de um tempo acumulam memórias reais – e não apenas as implantadas com que “nascem” – e adquirem experiências emocionais). São vivos, de carne e osso (artificial, mas as diferenças quase nem se notam) e desejam poder ultrapassar aquele cronómetro em contagem decrescente com o qual vivem inevitavelmente.

Das palavras de Philip K. Dick, Ridley Scott partiu para criar Blade Runner, que mesmo tendo conhecido estreia em 1982, só num director’s cut nos anos 90 traduziu a versão fatalista e desencantada com que o realizador desde sempre encarara esta história. Mais do que apenas uma trama sobre máquinas que anseiam ser homens, a trama sugerida por Philip K. Dick coloca-nos antes num mundo em que o próprio homem perdeu a humanidade. E não há ali nada mais “automático” do que as rotinas de busca e morte personalizadas pelos blade runners (ou seja, os caçadores de replicants na Terra, onde são proibidos). Vale a pena acrescentar que Philip K. Dick pensou estas figuras tendo em mente a memória de forças ao serviço do III Reich, e a quem o escritor dizia que não se podia aplicar a designação de humano. Tendo ainda acompanhado o desenvolvimento da preparação da adaptação da sua ideia escrita ao filme, notou que havia diferenças entre um e outro. E uma delas tem mesmo a ver com o que era o tema central da narrativa de K. Dick: o facto de Deckard (ou seja, o blade runner interpretado por Harrison Ford) ser uma figura desumanizada no seu processo de caça aos replicants.

Na visão assinada por Ridley Scott, Blade Runner – Perigo Iminente acompanha Deckard na sua caça, em ambiente urbano, a um grupo de quatro replicants da série Nexus 6 que, tal e qual dizem eles mesmos, viram com os seus olhos criados em laboratório coisas que os humanos nem imaginam. Estão numa missão de vida ou de morte na Terra, em busca do seu “criador”, ao qual querem apenas pedir uma coisa: tempo. Ou seja, vida.

Além deste debate sobre o que é do foro humano e onde estão as fronteiras que nos podem eventualmente separar da máquina o filme junta por cenário uma visão de uma Los Angeles de um futuro (agora próximo) que adquiriu um peso icónico na história do cinema de ficção científica. A cidade é lúgubre e chuvosa, sempre movimentada mas profundamente solitária. Os espaços e ambientes evocam memórias do film noir e houve mesmo quem chegasse a apontar que era um filme que olhava 40 anos à frente lembrando estilos de há 40 anos.



A música, assinada por Vangelis – naquela que é talvez a mais importante das suas bandas sonoras –, traduz na essência essa mesma ideia. E se no Love Theme a presença do saxofone transporta essa carga evocativa, que é ainda mais notória em One More Kiss Dear, já a essência dos momentos de música incidental que acompanham os planos gerais da cidade ou os diversos percursos entre edifícios sugerem o olhar adiante, que os registos eletrónicos sugeriam.

Pela música são ainda reforçadas as atmosferas de tensão e solidão que toldam a cidade, assim como a contaminação de formas da cultura asiática que sugerem novos paradigmas de referência na economia.

Agora, quase 40 anos volvidos sobre a estreia, Blade Runner tem o valor de um clássico e toda a história complexa de versões que o filme conheceu (da originalmente aprovada pelo estúdio à imaginada pelo realizador) está disponível numa soberba edição “integral” em Blu-ray.

Ao mesmo tempo a banda sonora tem merecido atenção de vários lançamentos recentes que, tal como no Blu-ray, dão conta da não menos complexa história de desentendimentos que a música criada para o filme conheceu. A edição original da banda sonora não correspondia exatamente à visão imaginada por Vangeli, apresentando em disco interpretações de parte do score por si composto, pela New American Orchestra. Supostamente mais perto do seu conceito original será assim o disco interpretado pelo próprio Vangelis, que há pouco tempo chegou aos escaparates… Cada um agora escolha a versão ideal para esta visão assombrada de um futuro que, pela lógica do calendário, agora já habita o nosso passado.

Queen “Flash Gordon” (1980)

 Editado em 1980 e encarado como um álbum de pleno direito do cânone da discografia de estúdio dos Queen (e não apenas uma banda sonora), “Flash Gordon” é um momento atípico na obra do grupo mas o tempo fez dele um episódio de culto. 

Em 1980, quando o cinema devolveu à vida “velho” herói dos tempos dos serials, a coisa não correu como o esperado e em muitos territórios a bilheteira ficou aquém de títulos então recentes como A Guerra das Estrelas, Encontros Imediatos de Terceiro Grau ou Alien – O Oitavo Passageiro, que faziam da ficção científica o “sabor” do momento na passagem dos setentas para os oitentas. Com o tempo Flash Gordon ganhou um estatuto de culto e a história recorda-o como uma das mais garridas entre as incursões do cinema pelo património dos comics.

Flash Gordon nasceu como uma tira de BD nos anos 30. Foi criado por Alex Raymond um pouco na linha das tiras que entretanto tinham já feito de Buck Rogers um herói popular. Flash era um jogador de pólo, formado na universidade de Yale que, na companhia de Dale Arden e do Dr. Zarkov, ruma ao planeta Mongo, onde o seu governante, o imperador Ming, se divertia com a Terra, lançando sobre o planeta azul um cocktail de desgraças, entre as quais uma tempestade de meteoritos… Coisa simples… Flash Gordon dá então por si num mundo dividido sob o jugo de um tirano impiedoso. Divide para reinar. E deixa cada comunidade entregue a um clima de suspeita e oposição face às suas vizinhas, desconhecendo por isso as máximas do estilo “o povo unido” e similares… Numa espécie de revolução despida de ideologia, feita de pancada, pistolas de raios, naves, homens falcão e outros seres e tradições bizarras, Flash Gordon lança as táticas, mobiliza as forças e encontra o ponto de rebuçado da unidade popular… Dá conta do recado e lá se vai o tirano por água abaixo… A personagem e os lugares por onde andou deram, na verdade, ainda mais pano para mangas, alimentando tiras publicadas na imprensa durante décadas a fio.

Em 1936, dois anos depois de nascido entre os quadradinhos de Alex Raymond, Flash Gordon chegou pela primeira vez ao cinema num primeiro serial, que se prolongaria por 13 episódios e representaria uma das primeiras grandes produções bem sucedidas do cinema de ficção científica. Tanto que, pouco depois, geraria dois novos serialsFlash Gordon’s Trip To Mars (de 1938, com 15 episódios) e Flash Gordon Conquers The Universe (de 1940, em 12 episódios). O impacte destes serials motivararia, mais tarde, a criação de uma primeira série televisiva de acção real (com 39 episódios produzidos entre 1954 e 55) e uma segunda, de animação (de 32 episódios, criados entre 1979 e 1980).

Foi sobre todo este legado, e a consciência da solidez de um herói criado pela cultura popular dos anos 30 que soubera cruzar gerações, que Dino de Laurentis avançou com o projeto de um filme centrado na figura de Flash Gordon, cuja realização entregou a Mike Hodges. O caldeirão de ingredientes era, de facto, impressionante, juntando um elenco onde encontrávamos nomes como os de Max Von Sydow (Ming), Topol (Dr. Zarkov), o futuro 007 Timothy Dalton (o príncipe Barin) ou Ornella Mutti (princesa Aura), um guarda roupa criado por Danilo Donati (que trabalhou com Fellini), uma direção artística atenta à herança dos serials dos anos 30, juntando agora a exuberância da cor e, cereja sobre o bolo, uma banda sonora essencialmente instrumental criada pelos Queen.



A trama recebeu alguns novos temperos – Flash Gordon passou a ser um jogador de futebol – mas na essência o filme retrata a ida do pequeno contingente a Mongo, o confronto com Ming e o jogo de resistência e oposição que se segue. Coisa linear, simples (a roçar por vezes o simplório), firme na exploração de um tom de fantasia e até alguma ingenuidade visual e com narrativa herdada das memórias das produções dos nos 30, vincando por outro lado a novidade berrante da cor, num festim camp de exagero barroco planetário como poucas vezes a ficção científica vestiu. Nem mesmo na Barbarella de Roger Vadim…

40 anos depois, Flash Gordon virou coisa de culto (consciente do tom kitsch e camp que aqui mora). E recentemente foi lançada uma nova edição em 4K e Blu-Ray com uma montanha de extras.

Criada pelos Queen, a música de Flash Gordon foi a primeira das suas duas investidas maiores pelo cinema (a segunda chegaria anos depois em Highlander, de Russel Mulcahy). A música é essencialmente instrumental (há apenas duas canções), com grande parte das composições a explorar o tom “futurista” dos emergentes sintetizadores, mantendo todavia o tom épico que sempre caracterizou a alma das canções do grupo. Foi o próprio Dino de Laurentis quem abordou os Queen para este desafio, tendo o grupo aceite desenvolver o projeto ao mesmo tempo que trabalhava no álbum The Game.

No fim, Flash Gordon é o mais atípico dos álbuns da obra dos Queen, a lógica camp que as imagens sugerem encontrando aqui perfeito complemento direto. O álbum foi recentemente reeditado com som remasterizado, juntando um segundo CD com maquetes, versões alternativas e gravações ao vivo.




Henry Mancini “The Music From Peter Gunn” (1959)

 

Um total de 114 episódios de 30 minutos, originalmente transmitidos entre 1958 e 1961 (primeiro na NBC, depois na ABC), deram vida a Peter Gunn, o primeiro detetive privado imaginado de raiz para uma ficção televisiva. Porém, é pela música então criada por Henry Mancini que, ainda hoje, se fala de Peter Gunn. Na verdade será injusto esquecer aqui o papel de Blake Edwards, o criador da série, que mais tarde conheceria momentos de reconhecimento mais duradouros pelos seus feitos na realização de filmes como Boneca de Luxo (a adaptação ao cinema de Breakfast at Tiffany’s de Truman Capote), o musical Victor Victoria ou a série de cinco filmes “A Pantera Cor de Rosa”, com Peter Sellers a vestir a pele do Inspetor Clouseau. Blake Edwards realizou oito episódios na primeira temporada de Peter Gunn, dois na segunda e na terceira já só assumiu a escrita do guião dois dois últimos. Presente de fio a pavio, a música de Henry Mancini chegou a disco num álbum editado em 1959, poucos meses depois da estreia do primeiro episódio (emitido em setembro de 1958).

            Com um percurso profissional iniciado em 1946 junto de Glenn Miller (trabalhando então como pianista e arranjador), Mancini encetou em 1952 uma relação mais próxima com os universos do cinema e da televisão. Quando, em 1958, foi chamado para criar a música para Peter Gunn, tinha já vários trabalhos seus no cinema e televisão, porém nenhum deles creditado. Trabalhava então em música que ficava guardada na biblioteca do estúdio para que pudesse ser utilizada quando necessário. Em 1957 tinha-se estreado em disco com o LP The Verrsatile Henry Mancini, lançado pela Liberty. E, no ano seguinte, Sousa in Stereo, na Warner. O disco com a banda sonora de Peter Gunn colocaria um ponto final no relativo anonimato. E seria o cartão de visita para uma carreira futura que dele fez um nome maior na história do cinema norte-americano.

            A música de Peter Gunn tinha o jazz como terreno de partida, mas refletia sobre ecos da emergência do fulgor do rock’n’roll. E desse confronto, assim como de ideias instrumentalmente bem sucedidas – como o colocar o piano a acompanhar, com as mesmas notas, a guitarra no tema-título – arrebataram atenções. O álbum, editado pela RCA Victor, gerou um caso de sucesso, tanto que acabaria por surgir um segundo volume, com o título More Music From Peter Gunn, ainda em 1959.




Destaque

Trio Beyond - 2006 "Saudades"

  Saudades é o nome do álbum duplo de estreia lançado pelo Trio Beyond em 2006 pela ECM Records. Saudades é uma palavra portuguesa que signi...