sábado, 28 de maio de 2022

Poemas cantados de Chico buarque


 Construção

Chico Buarque

 

Amou daquela vez como se fosse a última

Beijou sua mulher como se fosse a última

E cada filho seu como se fosse o único

E atravessou a rua com seu passo tímido


Subiu a construção como se fosse máquina

Ergueu no patamar quatro paredes sólidas

Tijolo com tijolo num desenho mágico

Seus olhos embotados de cimento e lágrima


Sentou pra descansar como se fosse sábado

Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe

Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago

Dançou e gargalhou como se ouvisse música


E tropeçou no céu como se fosse um bêbado

E flutuou no ar como se fosse um pássaro

E se acabou no chão feito um pacote flácido

Agonizou no meio do passeio público

Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego


Amou daquela vez como se fosse o último

Beijou sua mulher como se fosse a única

E cada filho seu como se fosse o pródigo

E atravessou a rua com seu passo bêbado


Subiu a construção como se fosse sólido

Ergueu no patamar quatro paredes mágicas

Tijolo com tijolo num desenho lógico

Seus olhos embotados de cimento e tráfego


Sentou pra descansar como se fosse um príncipe

Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo

Bebeu e soluçou como se fosse máquina

Dançou e gargalhou como se fosse o próximo


E tropeçou no céu como se ouvisse música

E flutuou no ar como se fosse sábado

E se acabou no chão feito um pacote tímido

Agonizou no meio do passeio náufrago

Morreu na contramão atrapalhando o público


Amou daquela vez como se fosse máquina

Beijou sua mulher como se fosse lógico

Ergueu no patamar quatro paredes flácidas

Sentou pra descansar como se fosse um pássaro

E flutuou no ar como se fosse um príncipe

E se acabou no chão feito um pacote bêbado

Morreu na contramão atrapalhando o sábado


Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir

A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir

Por me deixar respirar, por me deixar existir

Deus lhe pague


Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir

Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir

Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair

Deus lhe pague


Mulheres de Atenas

Chico Buarque

 

Mirem-se no exemplo

Daquelas mulheres de Atenas

Vivem pros seus maridos

Orgulho e raça de Atenas


Quando amadas, se perfumam

Se banham com leite, se arrumam

Suas melenas

Quando fustigadas não choram

Se ajoelham, pedem imploram

Mais duras penas; cadenas


Mirem-se no exemplo

Daquelas mulheres de Atenas

Sofrem pros seus maridos

Poder e força de Atenas


Quando eles embarcam soldados

Elas tecem longos bordados

Mil quarentenas

E quando eles voltam, sedentos

Querem arrancar, violentos

Carícias plenas, obscenas


Mirem-se no exemplo

Daquelas mulheres de Atenas

Despem-se pros maridos

Bravos guerreiros de Atenas


Quando eles se entopem de vinho

Costumam buscar um carinho

De outras falenas

Mas no fim da noite, aos pedaços

Quase sempre voltam pros braços

De suas pequenas, Helenas


Mirem-se no exemplo

Daquelas mulheres de Atenas

Geram pros seus maridos

Os novos filhos de Atenas


Elas não têm gosto ou vontade

Nem defeito, nem qualidade

Têm medo apenas

Não tem sonhos, só tem presságios

O seu homem, mares, naufrágios

Lindas sirenas, morenas


Mirem-se no exemplo

Daquelas mulheres de Atenas

Temem por seus maridos

Heróis e amantes de Atenas


As jovens viúvas marcadas

E as gestantes abandonadas

Não fazem cenas

Vestem-se de negro, se encolhem

Se conformam e se recolhem

Às suas novenas, serenas


Mirem-se no exemplo

Daquelas mulheres de Atenas

Secam por seus maridos

Orgulho e raça de Atenas


Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir

E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir

E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir

Deus lhe pague


A Banda

Chico Buarque

 

Estava à toa na vida

O meu amor me chamou

Pra ver a banda passar

Cantando coisas de amor


A minha gente sofrida

Despediu-se da dor

Pra ver a banda passar

Cantando coisas de amor


O homem sério que contava dinheiro parou

O faroleiro que contava vantagem parou

A namorada que contava as estrelas

Parou para ver, ouvir e dar passagem


A moça triste que vivia calada sorriu

A rosa triste que vivia fechada se abriu

E a meninada toda se assanhou

Pra ver a banda passar

Cantando coisas de amor


Estava à toa na vida

O meu amor me chamou

Pra ver a banda passar

Cantando coisas de amor


A minha gente sofrida

Despediu-se da dor

Pra ver a banda passar

Cantando coisas de amor


O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou

Que ainda era moço pra sair no terraço e dançou

A moça feia debruçou na janela

Pensando que a banda tocava pra ela


A marcha alegre se espalhou na avenida e insistiu

A Lua cheia que vivia escondida surgiu

Minha cidade toda se enfeitou

Pra ver a banda passar cantando coisas de amor


Mas para meu desencanto

O que era doce acabou

Tudo tomou seu lugar

Depois que a banda passou


E cada qual no seu canto

Em cada canto uma dor

Depois da banda passar

Cantando coisas de amor

Depois da banda passar

Cantando coisas de amor



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