O Porto Aqui Tão Perto
Sérgio Godinho
Vá comboio, meu comboio
carrega na velocidade
pára só quando chegarmos
à cidade
Olá cidade do Porto
a lágrima ao canto do olho
estava fechada há que tempos
com um ferrolho
Custou tanto cá chegar
mil e uma peripécias
quando menos se espera
o diabo tece-as
Ai, eu estive quase morto
no deserto
e o porto
aqui tão perto
Mal chegado, vislumbrei
dois amigos do alheio
vasculhando a minha caixa
do correio
Ah, tratantes, apanhei-vos
com a boca na botija
com certeza não esperam
que eu transija
Não é nada do que pensas
Viemos trazer-te um recado
Que nos foi entregue
Por um embuçado
Ai, eu estive quase morto
no deserto
e o Porto
aqui tão perto
Dizia assim o recado
no Palácio há variedades
se lá fores, verás que vais
matar saudades
Eu, matar, não gosto muito
mas saudades, é diferente
é como matar pulgas
alivia a gente
Cheguei lá e deparei
com uma mulher embuçada
intimei-a: Pára lá
com essa tourada
Ai, eu estive quase morto
no deserto
e o Porto
aqui tão perto
Desembuça-mos, vá lá
e já agora, desembucha
com esse capuz, mais pareces
uma bruxa
Diz-me o que fazes aqui
canto ali com as atracções
no conjunto do "Godinho
e os seus Godões"
Já te topo, há quanto tempo
te não punha a vista em cima
diz-me lá
se és ou não és
a Etelvina
Ai, eu estive quase morto
o deserto
e o Porto
aqui tão perto
Sou a Etelvina, sim senhor
não me digas, Etelvina
que andas assim por andares
clandestina
Clandestina? Não estás bom
Eu fugida? Nem se pense
Este fato é só p´ra aumentar
o suspense
Sou cantora no conjunto
e aparecemos embuçados
e ficam os espectadores
arrepiados
Ai, eu estive quase morto
no deserto
e o Porto
aqui tão perto
Mas na vida é bem diferente
ando de cara descoberta
com a cabeça e os sentidos
bem alerta
Já vi tantas injustiças
falo de dentro de mim
e o que me sai cá de dentro
sai-me assim:
Faço música p´ró povo
e tu, povo, retribois
e tu me inspiras sustenidos
e bemois
Ai, eu estive quase morto
no deserto
e o Porto
aqui tão perto
E eu também faço o mesmo
com o que o povo me dá
gratuito o dó-ré-mi
e mais o lá
Lá fiquei a noite toda
numa de improvisação
a regenerar o corpo
e o coração
Ai, eu estive quase morto
no deserto
e o Porto
aqui tão perto
O Primeiro Dia
Sérgio Godinho
A princípio é simples, anda-se sozinho
Passa-se nas ruas bem devagarinho
Está-se bem no silêncio e no burburinho
Bebe-se as certezas num copo de vinho
E vem-nos à memória uma frase batida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Pouco a pouco o passo faz-se vagabundo
Dá-se a volta ao medo, dá-se a volta ao mundo
Diz-se do passado, que está moribundo
Bebe-se o alento num copo sem fundo
E vem-nos à memória uma frase batida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
E é então que amigos nos oferecem leito
Entra-se cansado e sai-se refeito
Luta-se por tudo o que se leva a peito
Bebe-se, come-se e alguém nos diz: Bom proveito
E vem-nos à memória uma frase batida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Depois vêm cansaços e o corpo fraqueja
Olha-se para dentro e já pouco sobeja
Pede-se o descanso, por curto que seja
Apagam-se dúvidas num mar de cerveja
E vem-nos à memória uma frase batida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Enfim duma escolha faz-se um desafio
Enfrenta-se a vida de fio a pavio
Navega-se sem mar, sem vela ou navio
Bebe-se a coragem até dum copo vazio
E vem-nos à memória uma frase batida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
E entretanto o tempo fez cinza da brasa
E outra maré cheia virá da maré vaza
Nasce um novo dia e no braço outra asa
Brinda-se aos amores com o vinho da casa
E vem-nos à memória uma frase batida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
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