quarta-feira, 30 de novembro de 2022

POEMAS CANTADOS DE SERGIO GODINHO

O Porto Aqui Tão Perto

Sérgio Godinho

 

Vá comboio, meu comboio

carrega na velocidade

pára só quando chegarmos

à cidade


Olá cidade do Porto

a lágrima ao canto do olho

estava fechada há que tempos

com um ferrolho


Custou tanto cá chegar

mil e uma peripécias

quando menos se espera

o diabo tece-as


Ai, eu estive quase morto

no deserto

e o porto

aqui tão perto


Mal chegado, vislumbrei

dois amigos do alheio

vasculhando a minha caixa

do correio


Ah, tratantes, apanhei-vos

com a boca na botija

com certeza não esperam

que eu transija


Não é nada do que pensas

Viemos trazer-te um recado

Que nos foi entregue

Por um embuçado


Ai, eu estive quase morto

no deserto

e o Porto

aqui tão perto


Dizia assim o recado

no Palácio há variedades

se lá fores, verás que vais

matar saudades


Eu, matar, não gosto muito

mas saudades, é diferente

é como matar pulgas

alivia a gente


Cheguei lá e deparei

com uma mulher embuçada

intimei-a: Pára lá

com essa tourada


Ai, eu estive quase morto

no deserto

e o Porto

aqui tão perto


Desembuça-mos, vá lá

e já agora, desembucha

com esse capuz, mais pareces

uma bruxa


Diz-me o que fazes aqui

canto ali com as atracções

no conjunto do "Godinho

e os seus Godões"


Já te topo, há quanto tempo

te não punha a vista em cima

diz-me lá

se és ou não és

a Etelvina


Ai, eu estive quase morto

o deserto

e o Porto

aqui tão perto


Sou a Etelvina, sim senhor

não me digas, Etelvina

que andas assim por andares

clandestina


Clandestina? Não estás bom

Eu fugida? Nem se pense

Este fato é só p´ra aumentar

o suspense


Sou cantora no conjunto

e aparecemos embuçados

e ficam os espectadores

arrepiados


Ai, eu estive quase morto

no deserto

e o Porto

aqui tão perto


Mas na vida é bem diferente

ando de cara descoberta

com a cabeça e os sentidos

bem alerta


Já vi tantas injustiças

falo de dentro de mim

e o que me sai cá de dentro

sai-me assim:


Faço música p´ró povo

e tu, povo, retribois

e tu me inspiras sustenidos

e bemois


Ai, eu estive quase morto

no deserto

e o Porto

aqui tão perto


E eu também faço o mesmo

com o que o povo me dá

gratuito o dó-ré-mi

e mais o lá


Lá fiquei a noite toda

numa de improvisação

a regenerar o corpo

e o coração


Ai, eu estive quase morto

no deserto

e o Porto

aqui tão perto


O Primeiro Dia

Sérgio Godinho

 

A princípio é simples, anda-se sozinho

Passa-se nas ruas bem devagarinho

Está-se bem no silêncio e no burburinho

Bebe-se as certezas num copo de vinho

E vem-nos à memória uma frase batida

Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


Pouco a pouco o passo faz-se vagabundo

Dá-se a volta ao medo, dá-se a volta ao mundo

Diz-se do passado, que está moribundo

Bebe-se o alento num copo sem fundo

E vem-nos à memória uma frase batida

Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


E é então que amigos nos oferecem leito

Entra-se cansado e sai-se refeito

Luta-se por tudo o que se leva a peito

Bebe-se, come-se e alguém nos diz: Bom proveito

E vem-nos à memória uma frase batida

Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


Depois vêm cansaços e o corpo fraqueja

Olha-se para dentro e já pouco sobeja

Pede-se o descanso, por curto que seja

Apagam-se dúvidas num mar de cerveja

E vem-nos à memória uma frase batida

Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


Enfim duma escolha faz-se um desafio

Enfrenta-se a vida de fio a pavio

Navega-se sem mar, sem vela ou navio

Bebe-se a coragem até dum copo vazio

E vem-nos à memória uma frase batida

Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


E entretanto o tempo fez cinza da brasa

E outra maré cheia virá da maré vaza

Nasce um novo dia e no braço outra asa

Brinda-se aos amores com o vinho da casa

E vem-nos à memória uma frase batida

Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

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