terça-feira, 24 de janeiro de 2023

NO BAIRRO DO VINIL

 Fernanda da Luz - Igualdade

Hoje apresentamos um dos discos mais desconcertantes que já ouvimos em toda a nossa vida. É que, para além do interesse e da ambiguidade que as letras das canções só por si encerram no próprio contexto do disco, há também a destacar o facto de a intrigante e bela fadista em causa ter desaparecido sem deixar qualquer rasto no universo fadista (à semelhança de outras fadistas da época), sendo o seu paradeiro um verdadeiro mistério.
No que àquele que pensamos ser o seu único disco diz respeito, arriscamo-nos a deixar aqui uma opinião que muitos considerarão um grande disparate. Mas, por mais voltas que demos, não o conseguimos deixar de classificar (pelo menos tematicamente) como um disco de fado conceptual, o que desde logo, admita-se, já por si só é um estranho conceito atendendo ao género musical a que nos referimos.
As letras escritas por Fernanda Oliveira (e outra por Francisco Radamento), de forma consciente ou não, têm como temática um conceito muito preciso: o estranho lamento de uma esposa que ama o seu marido apesar deste ser o oposto da dedicação que a sua esposa lhe devota. E acreditem, leitores, que não foi fácil chegar a esta definição....

É que na realidade o disco, conforme se disse, é todo ele um estranho contracenso e um oposto de sentimentos que paradoxalmente vão desaguar num consenso: o amor de uma mulher ao seu marido. Na verdade, este E.P. da Alvorada é dominado por três canções, com letra de estilo narrativo, cantadas na primeira pessoa por uma esposa que aparentemente se encontra revoltada com a sua condição de mulher desprezada por um marido que tem por hábito chegar de madrugada a casa (provavelmente vindo da taberna). A expressão máxima dessa revolta corporiza-se na letra que dá corpo ao fado “Igualdade”, segundo o qual aquela pobre mulher, numa tentativa de emancipação acaba por dar o troco ao marido, fazendo o mesmo, ou seja, saindo de casa (para visitar a mãe) durante a noite ao ponto de o seu marido ter chegado a casa e não a ter encontrado, tendo ficado surpreendido por não ver a sua mulher deitada. Neste fado, o resultado final da acção da esposa acabou por dar os seus frutos, na medida em que o seu marido, desde esse dia, alterou mesmo o seu comportamento ao ponto de “assim que a lua aparecia” já se encontrar metido na cama.
Não podemos deixar de ficar indiferentes ao conteúdo da letra “Igualdade” que, diga-se, se tivesse sido gravada isoladamente, ou seja, num disco de uma face só, muita polémica teria provocado (caso a censura da época a deixasse escapar, claro). Porém, como tal canção se encontra inserida num disco em que Fernanda da Luz canta também os temas “Amor à pancada“ e “Meu esposo”, aquela letra acaba por perder qualquer força, transformando o que aparentemente parecia ser um disco de crítica social e um disco (de intervenção) feminista numa autêntica paródia machista. Para tal basta o leitor centrar-se em algumas ideias-base da canção “Amor à pancada”, título que nos tempos que hoje correm, bem poderia travestir-se numa forma também conceptual apelidada de violência doméstica. Para tal basta referir que se defende que o amor sem pancada nunca chega a ser amor enquanto ideal central deste fado, aliada a uma segunda ideia-base: a extrema dedicação desta (afinal) submissa esposa que não se importa de levar porrada!
Parece-nos, contudo, que o extremo da contradição surge com o último fado, “Meu Esposo”, no qual, mais uma vez a mesma esposa (novamente na primeira pessoa) parece afinal negar toda a letra do tema “Igualdade”, ao assumir a manifesta desigualdade entre a si e o seu marido no que à questão da igualdade dizia respeito. Ou seja, se no tema “Igualdade”, se revolta contra uma situação desigual, nesta última canção não só se conforma com essa mesma desigualdade, como também a confirma respondendo ao seu marido com uma dúzia de beijos.
Naturalmente, estamos perante um disco interessante mas de análise difícil e que, sinceramente, muito nos tem intrigado. Sendo certo que Fernanda da Luz foi apenas a mulher que deu a voz às letras que lhe foram dadas para ela cantar, sendo de todo impossível, face aos poucos elementos que possuímos sobre a gravação deste disco, chegar a uma conclusão que não seja mera especulação sobre as intenções que verdadeiramente estiveram por detrás da gravação destas três canções.

Fernanda da Luz, por altura da gravação do disco

Sobre Fernanda da Luz, é muito pouco o que podemos partilhar com os nossos leitores, sendo certo que deles esperamos a preciosa ajuda para desvendarmos um pouco mais desta fadista, a cuja graciosidade ficámos desde sempre rendidos. Ainda assim, adiantamos que se estreou como profissional em 1958 no café Luso em Lisboa, tendo ganho, inclusive, um concurso e sido coroada como “rainha” num concurso de “cantadeiras” (como na época se chamavam). Trabalhou depois em vários retiros, incluindo a casa de fados da famosa Márcia Condessa. Depois foi para o Porto, cantando em quase todas as casas de fado portuenses (A candeia, O tamariz e o Palladium). Em Maio de 1965, depois do seu reaparecimento, aceitou um convite para cantar em Angola durante vários meses, local onde ainda se encontrava em Junho desse ano, juntamente com fadistas que ai se encontravam a cantar, tais como Henriqueta de Almeida, Maria Emília, Mimi de Sousa, Maly Socorro, Maria Silvestre (outra desaparecida ...) e Lourdes Oliveira. Depois dessa data, não mais ouvimos falar de Fernanda da Luz. Terá casado em Angola ? Terá abandonado a vida artística ? Os leitores atentos o dirão.


Clique no Play para ouvir  (excepcionalmente na íntegra, pelo seu interesse) os fados "Igualdade", "Amor à pancada" e "Meu esposo"

Fernanda da Luz 
Alvorada MEP 60313
A) Chiquinho Faia (José Marques/ Fernanda de Oliveira) / Igualdade (João da Mata/ Fernanda de Oliveira)
B) Amor à pancada (Alfredo Marceneiro/ Francisco Radamanto) / Meu esposo (Casimiro Ramos/ Fernanda de Oliveira) 
Acompanhamento: Marcírio Ferreira, António Proença e José Maria Carvalho

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