quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

POEMAS CANTADOS DE SERGIO GODINHO

Trás-os-Montes

Sérgio Godinho


Belo Gavião

leva esta carta

p´ra além do Marão


Meu amigo Manuel

como vai Trás-os-Montes

quase um mês, o tempo voa

como vai a tua mãe, o teu pai

teus irmãos, diz

quando voltas pra Lisboa

tua irmã ainda escreve

essas frases bonitas que li num caderno assim:

"Quem era eu sem a vida

que era a vida sem mim"


Quando foi que escrevestes

já sei, foi pra longe

já lá vão quase dois anos

Trás-os-Montes não via

detrás das paredes

nem cheirava ares transmontanos

eles: porta fechada

eu: a abrir tua carta

e uma frase a brilhar, e eu li:

"Que eras tu sem a noite

que era a noite sem ti"


Quando vieres para baixo

vê lá, tem piedade

da fome do teu amigo

já aí vi feiticeiras

rodando o suíno

traz uns enchidos contigo

em Lisboa, quisera

eu comer uma alheira

que dê pra cantar assim:

"Que era eu sem a vida

que era a vida sem mim"


E ao chegarmos ao fim

de um jantar bem regado

que o vinho, esse, eu ofereço

línguas soltas, não vai ser difícil

lembrarmos de tudo desde o começo

veloz foi a viagem, a raiva

a risada, a energia

uma vida, enfim

"Que era eu sem a vida

que era a vida sem mim"


Viemos aqui parar

capital do Império

de trás de todos os montes

e o império desfeito, viemos provando

água de todas as fontes

e a amizade é por certo

a que sempre bebemos

do trago mais longo, assim

"Que era eu sem a vida

que era a vida sem mim"


Um Caso Fatal

Sérgio Godinho


É a mais pura verdade

o caso que eu vou contar

quem quiser pode nem acreditar


Se bem que, aviso já

mentiroso, eu não sou

quem quiser pode ir lá ver, que eu não vou


De mais a mais porque é

que eu havia de ir ver

o que já lá vi com estes dois

por quem sois

crêde em mim

vou contar-vos enfim

o tal caso verdadeiro

aí vai, tim-tim por tim-tim


Verdadeiro e não só

posso chamar-lhe atroz

este caso que me estrangula a voz


Não penseis que exagero

não julgueis que é demais

e que abuso de pimentas e sais


Não, bem pelo contrário

a minha musa indigente

nem sequer está à altura

e faz figura bem triste

mas bom, já que se insiste

estou disposto a revelar

no que este caso consiste


Ora bem, foi assim

este caso fatal

que foi p´ra pior

depois de estar mal


Não me lembro da hora

nem se era noite ou dia

só sei que algo no ar se pressentia


E os pressentimentos

são a modos que mosquitos

a esvoaçarem no ar

esmagar

dois ou três

se alivia o freguês

não anula o problema

nem o resolve de vez


Então seguiu-se o resto

do que estava p´ra vir

nem vos conto, p´ra vos não combalir


Foi um "vê se te avias"

um vai-vem muito louco

um toma-lá-dá-cá e fica com o troco


Teve um pouco de tudo

e foi pouco pró que teve

sem ter mais nem porquê

já se vê

que foi de esfola-gato

este caso que no meu modesto verso relato


Bem, e agora que já

estais familiarizados

com o assunto

seus assins e assados


E que tendes presente

a complexidade

de apartar de mexerico a verdade


Podereis ter ficado

com a estranha sensação

que eu nada disse, e porém


Também muitos doutores

falam bem, fazem flores

mas não dizem nada, nada

ao discursar: Meus senhores


 

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