Trás-os-Montes
Sérgio Godinho
Belo Gavião
leva esta carta
p´ra além do Marão
Meu amigo Manuel
como vai Trás-os-Montes
quase um mês, o tempo voa
como vai a tua mãe, o teu pai
teus irmãos, diz
quando voltas pra Lisboa
tua irmã ainda escreve
essas frases bonitas que li num caderno assim:
"Quem era eu sem a vida
que era a vida sem mim"
Quando foi que escrevestes
já sei, foi pra longe
já lá vão quase dois anos
Trás-os-Montes não via
detrás das paredes
nem cheirava ares transmontanos
eles: porta fechada
eu: a abrir tua carta
e uma frase a brilhar, e eu li:
"Que eras tu sem a noite
que era a noite sem ti"
Quando vieres para baixo
vê lá, tem piedade
da fome do teu amigo
já aí vi feiticeiras
rodando o suíno
traz uns enchidos contigo
em Lisboa, quisera
eu comer uma alheira
que dê pra cantar assim:
"Que era eu sem a vida
que era a vida sem mim"
E ao chegarmos ao fim
de um jantar bem regado
que o vinho, esse, eu ofereço
línguas soltas, não vai ser difícil
lembrarmos de tudo desde o começo
veloz foi a viagem, a raiva
a risada, a energia
uma vida, enfim
"Que era eu sem a vida
que era a vida sem mim"
Viemos aqui parar
capital do Império
de trás de todos os montes
e o império desfeito, viemos provando
água de todas as fontes
e a amizade é por certo
a que sempre bebemos
do trago mais longo, assim
"Que era eu sem a vida
que era a vida sem mim"
Um Caso Fatal
Sérgio Godinho
É a mais pura verdade
o caso que eu vou contar
quem quiser pode nem acreditar
Se bem que, aviso já
mentiroso, eu não sou
quem quiser pode ir lá ver, que eu não vou
De mais a mais porque é
que eu havia de ir ver
o que já lá vi com estes dois
por quem sois
crêde em mim
vou contar-vos enfim
o tal caso verdadeiro
aí vai, tim-tim por tim-tim
Verdadeiro e não só
posso chamar-lhe atroz
este caso que me estrangula a voz
Não penseis que exagero
não julgueis que é demais
e que abuso de pimentas e sais
Não, bem pelo contrário
a minha musa indigente
nem sequer está à altura
e faz figura bem triste
mas bom, já que se insiste
estou disposto a revelar
no que este caso consiste
Ora bem, foi assim
este caso fatal
que foi p´ra pior
depois de estar mal
Não me lembro da hora
nem se era noite ou dia
só sei que algo no ar se pressentia
E os pressentimentos
são a modos que mosquitos
a esvoaçarem no ar
esmagar
dois ou três
se alivia o freguês
não anula o problema
nem o resolve de vez
Então seguiu-se o resto
do que estava p´ra vir
nem vos conto, p´ra vos não combalir
Foi um "vê se te avias"
um vai-vem muito louco
um toma-lá-dá-cá e fica com o troco
Teve um pouco de tudo
e foi pouco pró que teve
sem ter mais nem porquê
já se vê
que foi de esfola-gato
este caso que no meu modesto verso relato
Bem, e agora que já
estais familiarizados
com o assunto
seus assins e assados
E que tendes presente
a complexidade
de apartar de mexerico a verdade
Podereis ter ficado
com a estranha sensação
que eu nada disse, e porém
Também muitos doutores
falam bem, fazem flores
mas não dizem nada, nada
ao discursar: Meus senhores
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