sábado, 11 de março de 2023

“Alô Malandragem, Maloca O Flagrante” (RCA, 1986), Bezerra da Silva

 




Bezerra da Silva (1927-2005) foi um dos mais carismáticos e escrachados nomes da história do samba. Apelidado de “embaixador das favelas”, ganhou fama com sambas irreverentes que retratavam malandros, caguetes, otários, policiais, cornos, sogras, adúlteras e políticos safados. Seu prestígio era tão grande que ultrapassavam as fronteiras do samba, a tal ponto de ser admirado até mesmo por bandas do rock brasileiro, dentre os quais Barão Vermelho e Planet Hemp.

José Bezerra da Silva nasceu no Recife, em Pernambuco. Aos 15 anos, foi expulso da Marinha Mercante, onde trabalhava. Partiu para o Rio de Janeiro para fugir da pobreza em que vivia na capital pernambucana e também para procurar o seu pai. Chegou a encontra-lo na então capital do Brasil, mas após desentendimentos com ele, acabou ficando sozinho. Para sobreviver no Rio de Janeiro, trabalhou na construção civil como pintor de paredes. No final dos anos 1940, ingressa no bloco carnavalesco Unidos do Cantagalo tocando tamborim.

Em 1950, um dos integrantes do Unidos do Cantagalo leva Bezerra da Silva para a Rádio Clube do Brasil, onde vai atuar como ritmista. Porém, entre o fim da década de 1950 e início dos anos 1960, Bezerra vive como mendigo pelas ruas de Copacabana. Por volta de 1965, sua vida muda de rumo quando consegue um emprego trabalhando na orquestra da gravadora Copacabana, onde acompanha vários artistas em gravações de discos. Em 1969, surge a sua primeira grande chance na carreira artística: lança o pela gravadora Copacabana o seu primeiro compacto, embora não tenha conseguido grande repercussão.

Seis anos depois, em 1975, Bezerra da Silva lança o seu primeiro álbum, O Rei do Coco – Volume 1, pela gravadora Tapecar. Daí em diante, o sambista lança um álbum a cada ano e vai construindo o seu nome no meio do samba, desenvolvendo o seu estilo e formando o seu público.

Mas a partir de 1980, quando é contratado pela gravadora RCA, a carreira de Bezerra da Silva começa a decolar, graças aos seus sambas irreverentes que retratam a dura realidade dos morros cariocas. Desde aquele momento, Bezerra desenvolvia o hábito de gravar sambas de compositores pouco conhecidos. Era uma maneira que Bezerra encontrou de usar o prestígio que estava conquistando para ajudar aqueles compositores que estavam à margem da indústria musical.

Bezerra da Silva: sambas irreverentes que retratavam malandros, caguetes, otários,
policiais, cornos, sogras, adúlteras e políticos safados. 

O grande estouro de Bezerra da Silva chega na maturidade, em 1984, aos 57 anos, com “Defunto Caguete”, um samba hilário do álbum É Esse Aí Que É o Homem, em que o sujeito mesmo morto, dedurava qualquer um. Nem no inferno e nem no céu ele perdeu o costume: caguetou o diabo e São Pedro. No ano seguinte, em 1985, saiu Malandro Rife, disco que emplacou dos sucessos da carreira de Bezerra, “Bicho Feroz” e “Vítimas da Sociedade”.

Em 1986, Bezerra da Silva veio com Alô Malandragem, Maloca O Flagrante, um álbum com doze sambas irreverentes que seguem a fórmula musical que consagrou o sambista pernambucano. Temas que se tornaram frequentes nos sambas gravados por Bezerra como adultério, contrabando, malandragem, drogas e delação, estão presentes em Alô Malandragem, Maloca O Flagrante.

O álbum começa com uma música que se tornou um dos maiores sucessos de Bezerra da Silva, “Malandragem Dá Um Tempo”, um samba em que um usuário de maconha, por receio de ser delatado por algum caguete, só vai acender o baseado quando os “dedos de seta” (o mesmo que caguete, delator), sumirem da área. O refrão se tornou antológico: “Vou apertar / Mas não vou acender agora / Vou apertar / Mas não vou acender agora / Se segura malandro / Pra fazer a cabeça tem hora / Se segura malandro / Pra fazer a cabeça tem hora”.

“Defunto Grampeado” começa com o soar de uma sirene de viatura da polícia. É a polícia chegando a um cemitério e manda para o enterro para prender ninguém menos que o defunto. Na verdade, no caixão não havia defunto, mas um “cabrito importado”, que na gíria da malandragem é contrabando. O samba termina com o vigário que fazia a cerimônia do falso sepultamento, e mais alguns malandros contrabandistas “enjaulados”.

“Quem Usa Antena É Televisão” é um samba sobre adultério, em que um malandro, ao voltar da boemia, chega em casa e encontra a sua mulher com outro homem. Embora seja um samba irreverente, “Quem Usa Antena É Televisão” possui um teor machista nos seus versos, e ainda traz a violência contra a mulher, que na letra da música, pagou um preço por trair o marido boêmio: “Lá na minha bocada / A crioula do Chico
Pedia socorro / Chorava, gemia / O coro comia / A nega apanhava / Que nem um ladrão / Isso aconteceu / Em uma madrugada / De segunda-feira / O Chico voltava
Lá da gafieira / E flagrou um esperto / No seu barracão...”.

“Maloca O Flagrante” é outro samba contrabando. Desta vez, os malandros fazem de tudo para esconder a muamba para se livrar do flagrante com a chegada da polícia: “Não vai dar pra dividida / Esconde a muamba e sai batido / Quando o malandro é de verdade / Na briga não gosta de sair ferido”.

Em “Vovô Cantou Pra Subir”, uma entidade espiritual, neste caso o “vovô”, adverte um pai de santo desonesto para não cobrar pelas consultas, e lembra que “caridade não se paga”, um dos princípios da Umbanda. Durante a época difícil que Bezerra da Silva vivenciou quando morou na rua no Rio de Janeiro, no começo dos anos 1960, o sambista encontrou apoio na Umbanda, e através dela conseguiu refazer a sua vida.

“A Rasteira do Presidente” foi gravada durante o recém-implantado Plano Cruzado pelo então presidente do Brasil, José Sarney, no início de 1986, com o objetivo de combater o alto índice da inflação. O governo “congelou” os preços, e para fazer com que o plano desse certo, incentivou o povo a fiscalizar os preços no comércio (lojas, supermercados, postos de gasolina...). Após poucos meses de algum resultado positivo, o plano perdeu fôlego e fracassou antes mesmo do ano acabar.

“Meu Bom Juiz” faz uma clara alusão a José Carlos dos Reis Encina (1956-2004), o Escadinha, traficante de drogas que foi um dos fundadores da organização criminosa Comando Vermelho, e que em 1985 protagonizou uma fuga espetacular, ao fugir de helicóptero do presídio da Ilha Grande, no Rio de Janeiro. Porém, no ano seguinte foi preso novamente. Escadinha comandava o tráfico de drogas no Morro do Juramento, e como todo líder do tráfico, comportava-se como um benfeitor da comunidade para ganhar a confiança. É uma triste realidade que persiste não só nas comunidades pobres do Rio de Janeiro, mas nas de outras grandes cidades brasileiras. A letra sai em defesa daquele suposto “defensor” da comunidade como se fosse um herói, um reflexo da pouca ou nenhuma presença do Estado nas comunidades carentes. Se o poder público não atende as necessidades dessa população, são os traficantes quem atendem, cobrando em troca o silêncio e a dignidade dela.

José Carlos dos Reis Encina, o "Escadinha",  um dos fundadores do Comando Vermelho
e tema do samba "Meu Bom Juiz".


“Língua De Tamanduá” é mais um samba sobre caguete que entrega a malandragem para a polícia, e tem a sua língua comparada a de um tamanduá. Neste samba, o caguete entregou até quem nada fez de errado: “Veja bem o que você fez / Seu língua de tamanduá / Tem gente pagando pelo que não fez / Só porque / Seu dedo não soube apontar / Agora a malandragem já está sabendo que você cagueta e vai lhe ripar”.

Em “Na Boca Do Mato”, um malandro escapou da casa de uma mulher após a chegada do furioso marido dela. Só não morreu porque sabia jogar capoeira que ele teria aprendido na Bahia.

Se em “Na Boca Do Mato”, o corno era valente, em “Sua Cabeça Não Passa Na Porta”, o corno é manso e inofensivo: “Seu amigo que é gavião / Está sempre contente e feliz / Todo dia ele dá um presente à sua criança e você nada diz
E a sua mulher, muito honesta, jura e diz que nem morta / Mas qualquer dia sua cabeça não passa na porta”.

Para a malandragem, otário e caguete são a mesma coisa. Em “Os Direitos Do Otário”, o otário só tem dois direitos: tomar tapa e não dizer nada.

“Compositores De Verdade” encerra o álbum homenageando os compositores. Assim como Bezerra deu visibilidade a compositores pouco prestigiados, o sambista sempre foi grato a eles pelo seu sucesso. Composta sob medida para Bezerra por Romildo, Édson Show e Naval, “Compositores De Verdade” é um samba de agradecimento. Em seus versos, o samba traz de maneira interessante citações a outros sambas que fizeram sucesso na voz de Bezerra da Silva como “Colina Maldita” (“Eu sou do pico, da Colina Maldita”), “Mandei Pro Inferno” (“Já mandei a minha nega pro inferno”), “Produto Do Morro” (“Sou produto do morro”), “Pega Eu” (“Gatuno que entra na casa de pobre”), “Minha Sogra Parece Sapatão” (“Toma tapa da minha sogra sapatão”) e “Bicho Feroz” (“Para bicho feroz tenho a planta maneira”).

Considerado um dos melhores discos da carreira de Bezerra da Silva, Alô Malandragem, Maloca O Flagrante teve como as faixas que mais fizeram sucesso “Malandragem Dá Um Tempo”, “Meu Bom Juíz” e “Sua Cabeça Não Passa Na Porta”. O sucesso em rádio de “Malandragem Dá Um Tempo”, não livrou Bezerra de ter problemas com as autoridades que o acusavam de fazer apologia à maconha. Em 1996, a banda Barão Vermelho lançou um disco intitulado Álbum, em que a banda carioca regravou sucessos de outros artistas, dentre eles “Malandragem Dá Um Tempo”, porém numa versão mais pop.

Faixas

Lado A
  1. “Malandragem Dá Um Tempo” (Popular P – Adelzonilton - Moacir Bombeiro)    
  2. “Defunto Grampeado” (Evandro do Galo - Pedro Butina)
  3. “Quem Usa Antena É Televisão” (Pinga – Celsinho da Barra Funda)          
  4. “Maloca O Flagrante” (Tonho - Cláudio Inspiração - Laureano)
  5. “Vovô Cantou Pra Subir” (Roxinho - Alicate de Niterói)
  6. “A Rasteira Do Presidente” (Bicalho - Silvio Modesto) 

Lado B
  1. “Meu Bom Juiz” (Beto s - Braço - Serginho Meriti) 
  2. “Língua De Tamanduá” (Valmir - Tião Miranda)
  3. “Na Boca Do Mato” (Luiz Grande)
  4. “Sua Cabeça Não Passa Na Porta” (Barbeirinho do Jacarezinho)
  5. “Os Direitos Do Otário” (1000tinho - Jorge Garcia)
  6. “Compositores De Verdade” (Romildo - Édson Show – Naval)


“Malandragem Dá Um Tempo” 


“Defunto Grampeado” 


“Quem Usa Antena É Televisão”


 
“Maloca O Flagrante”


 
“Vovô Cantou Pra Subir”


 
“A Rasteira Do Presidente”


 
“Meu Bom Juiz”


 
“Língua De Tamanduá”


“Na Boca Do Mato”


 
“Sua Cabeça Não Passa Na Porta”


 
“Os Direitos Do Otário”


 
“Compositores De Verdade”

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