terça-feira, 16 de maio de 2023

Resenha Fearless Álbum de Crown Lands 2023

 

Resenha

Fearless

Álbum de Crown Lands

2023

CD/LP

Num universo em que os estilos e influências musicais parecem estar cada vez mais saturados - e por isso mesmo alguns artistas buscam alguma pitada de originalidade para obterem um lugar ao sol - dois rapazes vão na senda oposta: fazem um som sem nenhum medo de escancarar sua influência pelo Rush dos áureos anos 70 progressivos. E este redator pensou: ei, eu gosto pra caramba do Rush dos anos 70. Vou ouvir qual é a desses caras.

E então me deparei com a bolacha "Fearless", segundo trabalho full-lenght da banda canadense (a alusão ao Rush já começa aqui), composta por Cody Bowles (bateria, vocais e flauta) e Kevin Comeau (guitarra, baixo e teclado).

Peraí, só esses dois mesmo? Sim, só esses dois mesmo.

Então Comeau toca guitarra e baixo ao mesmo tempo? Já chegamos lá.

O álbum contém 9 faixas - sendo a primeira um épico progressivo de 18 minutos de duração - e as demais mais curtas, nem por isso carecendo dos clássicos elementos do prog rock setentista. Essa é a praia que permeia todo o trabalho (embora não seja a única).

Quando ouvi as notas iniciais de teclado da primeira faixa, "Starlifter: Fearless Pt. II", na verdade nem me lembrei do Rush, e sim do Toto, na introdução de "Better World", por ser um timbre mais moderno, por assim dizer. Mas logo em seguida, quando os demais instrumentos aparecem, a ode ao Rush é notória, não apenas nos timbres, mas também na execução.

O começo é logo chutando a porta: tem um quê de "2112" ou "Hemispheres", tudo misturado. Puro Rush anos 70. O vocal agudo de Bowles nem lembra tanto o de Geddy Lee, mas a proposta é a mesma.

Em outros momentos, o som do Rush dos anos 80 também se faz presente, como na clara referência a "Red Barchetta" na batida aos 3:15, ou a "Natural Science" no vocal etéreo aos 13:30.

E respondendo à pergunta do início, como fica a guitarra e o baixo? Comeau é, ao mesmo tempo, guitarrista e baixista, mas obviamente não pode tocar guitarra e baixo ao mesmo tempo; então ele usa um instrumento de 2 braços, um para a guitarra e outro para o baixo, e vai alternando entre os dois conforme o momento da música - sempre preenchendo com teclados acionados por pedais (Geddy Lee também usava com frequência pedais para teclado). Essa alternância entre guitarra e baixo é ainda mais interessante de verificar assistindo performances ao vivo.

A música vai se desenvolvendo por diferentes atmosferas, tempos quebrados, momentos ora épicos, ora intimistas. Tudo muito bem executado e produzido. Rock progressivo "retrô" em sua essência.

Por volta da metade da música, um belo solo de guitarra de Comeau encerra uma seção, e então entra um teclado que surpreendentemente me remeteu ao... Tangerine Dream! Como apreciador do Tangerine, essa foi outra agradável surpresa, que mostrou a versatilidade dos rapazes.

Embora eu tenha achado a música um pouco longa, podendo ser retiradas determinadas partes para condensar um pouco o resultado final, termino a audição  com um sorriso no rosto. Tem influência de Rush anos 70, mas ao mesmo tempo é moderno e fresco. Belo início.

A segunda faixa é "Dreamer Of The Dawn", um hard rock moderno, energético e direto, centrado num riff acessível de guitarra que me lembrou, inclusive, o próprio The Offspring, em faixas como "Days Go By". Destaque para o belo refrão cantado a plenos pulmões na voz aguda de Bowles.

Em seguida vem "The Shadow", outro hard rock, dessa vez mais cadenciado, que bebe da fonte do AOR dos anos 80. Os calmos versos explodem em outro refrão grudento. Se tivesse sido lançada nos anos 80, bandas como Whitesnake, Europe ou Poison ficariam com inveja. Mais um ponto pra versatilidade da dupla.

"Right Way Back" já havia sido lançada 2 anos antes num EP, e retorna com um instrumental veloz e um vocal despojado que me remeteu ao Greta Van Fleet (para o qual, inclusive, o Crown Lands abriu alguns shows). Boa pra levantar a galera.

Se o álbum iniciou com a parte 2 do épico, só agora é que entra a parte 1 (ué?). "Context: Fearless Pt. I" segue as diretrizes da parte II, num retorno à homenagem ao Rush. Porém, por ser mais concisa, me agradou ainda mais. Novamente uma alusão clara ao Rush de "Red Barchetta" dá as caras a partir dos 2 minutos. E a voz falada meio eletrônica a partir dos 4:20 nos lembra demais as vozes que Neil Peart às vezes inseria em músicas do Rush, como "The Necromancer", e, mais tarde, "Roll The Bones" (oh, céus, quantas comparações ao Rush! Calma, tem mais). Destaque, na letra, pro interessante verso "if life is a wheel, please let it spin" (se a vida é uma roda, deixe-a girar). 

Aí vem a que eu acho que é minha faixa preferida do álbum, "Reflections", pois ela, mesmo curta, consegue ser ao mesmo tempo melódica e progressiva na medida certa, com belas execuções dos instrumentos (o que dizer das viradas de bateria no refrão à la Neil Peart?). 

Ela se inicia com a alusão mais clara ao Rush de todo o trabalho: a atmosfera de teclado sombrio permeado por batidas nos pratos, sons de gotas caindo e notas soltas de guitarra nos remete imediatamente ao começo de "Xanadu".

Destaque mais uma vez para o belo refrão, cuja letra termina em "we'll recognize each other's souls again, on the other side" (vamos reconhecer as almas uns dos outros novamente, do outro lado). Profundo. 

Outro destaque é a bela melodia de apenas dois acordes no interlúdio antes da última execução do refrão, permeada por um solo de guitarra recheado de feeling.

Falamos da semelhança com "Xanadu", mas, ao contrário desta, que é um épico longo, "Reflections" é novamente um hard rock conciso, com elementos prog, que mostra que progressivo bem sempre é sinônimo de pretencioso.

Nesse momento, vem a mais agradável surpresa do álbum, "Penny", uma curta seção totalmente instrumental, no violão, tocando uma singela melodia bucólica. É pra se ouvir de olhos fechados, fazendo de conta de que está numa casa no campo, apreciando a chuva cair no final da tarde (fui longe!). Ao mesmo tempo em que evidencia o incrível censo de melodia de Comeau, é uma bem-vinda pausa para respirar, após as porradas das faixas anteriores. Assim, o álbum se torna ainda mais interessante por sua dinâmica. Que bela canção! Se quiser relaxar, feche os olhos e ouça-a em loop.

Após esse interlúdio, o hard rock novamente dá as caras em "Lady Of The Lake", música que ganhou videoclipe, desta vez nos fazendo lembrar bastante o Greta Van Fleet. Mais uma vez temos um refrão forte pra cantar junto, cuja voz aguda fornece o brilho adicional, a cereja do bolo. Destaque para o falsete que ele faz no final do último refrão.

Por fim, o álbum se encerra com "Citadel", pela primeira vez uma música centrada no piano, lindamente tocado por Comeau. A voz de Bowles é carregada de emoção, permeando a melancolia do som. Tocante encerramento. E como eu não consigo deixar de associar a alguma outra banda, aí vai: a melodia me lembrou "Pro Memoria", do Ghost (pois é!), talvez a minha música preferida dos mascarados. Detalhe: ambas as músicas se iniciam com o mesmo acorde.

E é isso.

Se o Rush já tinha os méritos de fazer aquela sonzeira sendo apenas três, o fato de Crown Lands ser composto de apenas dois é digno de elogios. E ao vivo eles também dispensam músicos adicionais. Encaram tudo como um duo mesmo; embora, é claro, o som não fique tão preenchido quanto nas versões de estúdio, nas partes mais pesadas. Mas tiro o chapéu pra eles pela garra.

Vale lembrar de outras bandas cujo baterista era também vocalista: Genesis e Spock's Beard, por exemplo. No Genesis, Phil Collins cantava e tocava bateria no estúdio, mas ao vivo havia baterista na turnê; no Spock's Beard, o mesmo acontecia quando Nick D'Virgilio era o vocalista/baterista. No Crown Lands não: Cody Bowles toca bateria e canta do início ao fim do show. Spot on!

Não sei se futuramente eles passarão a ter músicos adicionais nas turnês. Se por um lado "aliviaria" as atribuições dos dois e permitiria um som mais encorpado, por outro perder-se-ia um pouco dessa identidade que eles têm, apenas os dois, de forma orgânica. Nem eu mesmo tenho uma opinião formada quanto ao que seria melhor. Aguardemos: o tempo dirá.

Quanto à semelhança com o Rush, espero que o duo aos poucos amadureça e encontre sua própria sonoridade (sem prejuízo, é claro, de mostrar suas influências). De toda forma, é inegável o talento e o futuro promissor dos rapazes. Têm muita lenha pra queimar. E, para além deles, vemos que tem muita coisa boa por aí precisando ser apreciada, basta que saibamos garimpar. Fiquei com o hype de acompanhar o que eles farão a seguir - e, quem sabe, voltarei a escrever por aqui!

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