Após dois anos consecutivos de grande audiência na TV brasileira, promovendo uma revolução musical e uma transformação no público jovem brasileiro, o programa dominical Jovem Guarda, da TV Record, em São Paulo, começava a dar sinais de desgaste já em 1967. Naquele ano, o mundo passava por uma ebulição social e política.
Os Beatles, uma das grandes referências da Jovem Guarda, já estava em outra sintonia, estavam voltados para a psicodelia e o experimentalismo musical através do revolucionário álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. O rock se tornara mais questionador através dos versos poéticos e conscientizadores de artistas como Bob Dylan, e ainda mais rebelde do que já era com a guitarra incendiária de Jimi Hendrix (1942-1970). A Guerra do Vietnã ainda horrorizava o mundo. Em todos os cantos do planeta, os jovens foram às ruas protestar contra o autoritarismo, contra as guerras e contra a hipocrisia dos poderosos. O movimento hippie, por meios jovens com roupas coloridas e cabelos compridos, pregavam a paz e o amor livre.
Aqui no Brasil, a ditadura militar estava no comando do país, restringindo a liberdade de expressão. Os festivais de música da TV Record eram a grande sensação na música brasileira, trazendo uma nova geração de artistas apresentando canções com letras mais elaboradas e um senso crítico bastante apurado sobre a realidade brasileira daquele momento. Tendo à frente Caetano Veloso e Gilberto Gil, o Tropicalismo estava em plena ascensão promovendo uma revolução na música brasileira e nas artes visuais.
O que se percebia era que as canções juvenis e ingênuas da Jovem Guarda se mostravam obsoletas diante de um momento tenso e explosivo em que o Brasil e o mundo viviam. A cabeça dos jovens estava voltada para um novo momento, e isso se refletiu consideravelmente na queda de audiência do programa Jovem Guarda, comandado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa.
Roberto já percebia que aquelas “jovens tardes de domingo” televisivas estavam com os dias contados. Para tanto, sentiu que era preciso dar um novo rumo à sua carreira artística. Já em janeiro de 1968, Roberto Carlos anunciou que estava deixando o programa Jovem Guarda. A partir de então, a atração televisa ficou sob o comando de Erasmo e Wanderléa, mas que não durou muito tempo. Em meados de 1968, o programa melancolicamente acabou.
Em janeiro de 1968, Roberto Carlos deixou o programa Jovem Guarda (foto) para se dedicar exclusivamente à música. |
Em fevereiro de 1968, Roberto participou do Festival de San Remo, na Itália, onde venceu a edição daquele ano do festival com a canção “Canzone Per Te”, de autoria de Sergio Endrigo e Sergio Bardotti. A carreira de Roberto começava a ir além das fronteiras brasileiras. Dentro de pouco, sua fama alcançaria a América Latina.
Àquela altura, Roberto começava a se interessar pela música negra americana, o que iria exercer uma influência significativa no processo de evolução musical na carreira do cantor capixaba. Roberto estava ouvia muito discos de James Brown (1933-2006), Otis Redding (1941-1967), Aretha Franklin (1942-2018), Wilson Pickett (1941-2006), Dionne Warwick, Marvin Gaye (1939-1984), Supremes, e mais artistas de gravadoras como Motown, Atlantic e Stax-Volt, companhias que continham em seus casts, os melhores cantores e conjuntos de soul music e R&B da época. O interesse de Roberto pela soul music era tão grande que ele chegou a ir para Nova York, nos Estados Unidos, só para assistir a shows no Teatro Apollo, no Harlem, o templo da música negra americana.
Enquanto Roberto procurava dar um novo rumo à sua arte, focando em um trabalho mais maduro e mais romântico, um novo cantor começava uma escalada meteórica nas paradas de sucesso no Brasil. Tratava-se de Paulo Sérgio (1944-1980), que com a “Última Canção”, tornara-se um fenômeno surpreendente. “Última Canção” fez um sucesso tão grande a tal ponto do álbum Paulo Sérgio – Volume 1 alcançar a marca de 800 mil cópias vendidas. Com um timbre de voz parecido e um estilo de cantar que lembravam o grande ídolo da Jovem Guarda, Paulo Sérgio logo foi considerado na época o “novo Roberto Carlos”, e não tardou a imprensa fomentar uma rivalidade entre os dois cantores. Houve quem achasse que o reinado de Roberto Carlos estava ameaçado.
Reinado ameaçado: em 1968, o cantor Paulo Sérgio lançou o seu primeiro álbum (foto), que alcançou imenso sucesso e ameaçou a popularidade de Roberto Carlos. |
A ascensão meteórica de Paulo Sérgio fez a gravadora CBS tremer na base. Tanto para a gravadora como para Roberto Carlos, a renovação do repertório era mais do que necessária, era inevitável, caso contrário, corria o risco de Roberto acabar virando uma “imitação” de Paulo Sérgio, quando na verdade era o contrário. O interesse de Roberto pela soul music seria fundamental no processo de renovação, o que faria p seu rival que o copiava, se tornar um tanto quanto obsoleto.
Em outubro de 1968, Roberto entrou em estúdio para gravar um novo álbum. O processo de gravação desse novo disco foi difícil. A black music americana era uma novidade para a maioria dos músicos que acompanharam Roberto no estúdio de gravação, como a banda RC-7 (que acompanhava o cantor em gravações e shows), a Renato & Seus Blue Caps que fez a base em algumas faixas.
Um dos poucos músicos que se sentiram muito à vontade com a proposta musical de Roberto foi o baixista da banda Renato & Seus Blue Caps, Paulo César Barros. Embora a banda, comandada por seu irmão, Renato Barros, fosse conhecida por seguir uma linha musical inspirada nos Beatles, Paulo César Barros tinha uma predileção pela música negra americana. Gostava de ouvir em casa discos de soul music, funk e jazz. Isso facilitou o trabalho no músico na gravação do disco e a atender ao que Roberto Carlos queria.
Participaram também das gravações um trio de metais formado por Manoel Araújo (trombone), Jaime Araújo (sax alto) e Zé Bodega (sax tenor), três músicos integrantes da famosa Orquestra Tabajara. O indispensável organista Lafayette (1942-2021), com o seu órgão Hammond B-3, tocou na maioria das faixas do álbum.
Antes do lançamento do novo álbum, foi lançado single da canção “Eu Te Amo, Te Amo, Te Amo”, uma pequena amostra do álbum que estava por vir e uma tentativa da gravadora CBS frear o sucesso estrondoso de “Última Canção”, de Paulo Sérgio. “Eu Te Amo, Te Amo, Te Amo” surpreendeu o público e a crítica pela inovação, uma canção puxada para a soul music fez um enorme sucesso nas rádios. Isso só aumentou as expectativas para o novo álbum do Roberto.
Numa estratégia de marketing, a CBS intitulou o novo álbum de Roberto Carlos como O Inimitável, um título claramente provocativo em resposta ao rival Paulo Sérgio. A capa mostra Roberto Carlos sentado com o violão, tendo à sua frente uma folha de papel sobre a mesa, como se estivesse compondo uma canção.
Primeiro álbum de Roberto Carlos após o cantor ter deixado o programa Jovem Guarda, O Inimitável trouxe novos ares para carreira de Roberto Carlos. Neste álbum, Roberto conseguiu atingir o seu objetivo que era buscar uma musicalidade mais madura, mais elaborada, mais romântica, e agregar à sua música referências de soul music, funk e R&B. O álbum apresenta uma produção mais apurada, mais cuidadosa. A sonoridade juvenil dos discos anteriores deu lugar a um som com arranjos mais elaborados, naipe de metais contagiante, linha de baixo pulsante e vocais de apoio com forte influência da música negra americana. O resultado é um álbum completamente diferente do disco anterior, o RobertoCarlos Em Ritmo de Aventura, que é uma trilha sonora do filme homônimo, cuja sonoridade era toda apoiada na Jovem Guarda.
Das doze faixas, apenas três são de autoria da dupla Roberto Carlos e Erasmo Carlos. Talvez fosse um reflexo da retomada da parceria entre Roberto e Erasmo, que estava rompida por cerca de um ano após um desentendimento entre os dois, mas que foi reatada em 1967, durante a concepção do álbum Roberto Carlos Em Ritmo de Aventura. As demais faixas são de autoria de outros compositores.
Diferente dos álbuns anteriores que começam com um rock, o álbum O Inimitável rompe essa tradição com uma balada romântica, “E Não Vou Mais Deixar Você Tão Só”, uma linda canção composta pelo cantor e compositor Antônio Marcos (1945-1992), e que começa com um som de flauta. A canção traz versos românticos dotados de muita maturidade e arranjos muito bem elaborados. “E Não Vou Mais Deixar Você Tão Só” foi regravada pelos mais diversos artistas ao longo do tempo como Paulo Ricardo, José Augusto, Leonardo e Raça Negra.
“Ninguém Vai Tirar Você de Mim” é uma balada romântica bem ao estilo Jovem Guarda: versos simples e arranjos básicos. Trata sobre um homem apaixonado que teme perder a mulher que ama, e que é capaz de fazer de tudo para não perdê-la.
O cantor e compositor Antônio Marcos, autor de "E Não Vou Deixar Você Tão Só", canção gravada por Roberto Carlos e abre o álbum O Inimitável. |
“Se Você Pensa” é uma dos pontos altos do álbum e uma das canções inovadoras que deram um novo rumo à carreira de Roberto Carlos. A música possui um balanço funk irresistível, um naipe de metais vibrante e os vocais berrados de Roberto Carlos. A letra escrita por Roberto foi inspirada nas primeiras crises conjugais do cantor com a esposa Cleonice Rossi (1941-1990) - mais conhecida como Nice - que sentia ciúmes do marido no trato com as fãs. Em algumas situações, o ciúme de Nice chegava a incomodar Roberto, a tal do cantor escrever versos fortes e diretos como: “Daqui pra frente / Tudo vai ser diferente / Você tem que aprender a ser gente / Seu orgulho não vale nada, nada”. Elis Regina (1945-1982), Wilson Simonal (1938-2000), Gal Costa e Pitty foram alguns dos artistas que regravaram “Se Você Pensa”.
O clima se acalma com a baladinha bobinha “É Meu, É Meu, É Meu”, que remete aos tempos do Roberto do início da carreira, e traz o cantor fazendo solos de gaita. Em “Quase Fui Lhe Procurar”, Roberto é acompanhado de um violão e canta versos sobre um homem apaixonado que errou bastante com a mulher que ama e, desesperado, pede a ela para reatar o romance, prometendo que desta vez viverão um grande amor.
O lado A de O Inimitável encerra com a clássica “Eu Te Amo, Te Amo, Te Amo”, um dos maiores sucessos da carreira de Roberto Carlos. Lançada como single antes do álbum, “Eu Te Amo, Te Amo, Te Amo” foi a primeira canção em estilo soul music da música brasileira a estourara nas paradas de rádio. A canção impressiona pelos vocais de apoio femininos formados por Regina e Marisa Corrêa, ambas do grupo Trio Esperança. Para que a voz de Roberto soasse como se estivesse falando ao telefone durante o refrão, o técnico de som fez uso de filtros sonoros no estúdio de gravação. Quando o single de “Eu Te Amo, Te Amo, Te Amo” foi lançado, algumas pessoas retornaram às lojas para trocar os singles achando que efeito na voz do Roberto era um defeito de fabricação.
Se o lado A terminou com uma grande canção, o lado B do álbum começa com uma outra grande canção, “As Canções Que Você Fez Pra Mim”, escrita por Roberto Carlos para consolar Dedé, baterista da banda RC-7, e um grande amigo do cantor de muitos anos. Dedé era namorado da cantora Martinha, uma das estrelas Jovem Guarda. Os dois eram muito apaixonados, Martinha chegou a compor canções para o baterista, como “Eu Tem Amo Mesmo Assim”. Mas após algumas decepções com Dedé, Martinha terminou o namoro com o músico. Solidário ao amigo, Roberto compôs uma canção pensando em ajuda-lo e alguma forma, talvez quem sabe, para tentar reatar o namoro de Dedé e Martinha. Apesar de sensibilizada com a beleza da canção, Martinha não voltou para Dedé. Muito pelo contrário, ela já estava naquele momento namorando o cantor Antônio Marcos. Com um concorrente como aquele, Dedé percebeu que não tinha mais chance alguma.
“As Canções Que Você Fez Pra Mim” mostra Roberto entregue ao seu propósito de ser uma grande cantor romântico, mas dentro de uma estética moderna como intérprete do estilo. Os vocais de apoio femininos mais uma vez são brilhantes. Nesta canção, há a participação de dois organistas, Mauro Motta, fazendo a base rítmica, e Lafayette fazendo os solos num órgão Hammon B-3. Ao final da canção, há uma citação melódica de “Nossa Canção”, gravada por Roberto Carlos em 1966.
Os ecos de Jovem Guarda reaparecem na radiofônica “Nem Mesmo Você, composta por Helena dos Santos (1922-2005), sobre um sujeito que tenta negar a todo custo o amor que sente por mulher por quem é apaixonado. Ele vivencia outros romances, mas todos esses amores são iguais a essa mulher.
“Ciúme de Você” foi composta por Luiz Ayrão, do qual Roberto já havia gravado a já citada “Nossa Canção”. Ayrão compôs “Ciúme de Você” inspirado numa situação pessoal, o seu relacionamento com a sua namorada e futura esposa. Os dois trabalhavam no Banco do Estado do Rio de Janeiro, mas em setores diferentes. As normas do banco proibiam namoro entre funcionários. O distanciamento e as regras do banco acirravam o ciúme de Ayrão, principalmente quando ele a via a sua namorada atendendo ao público ou ao telefone esboçando algum sorriso. Luiz Ayrão mostrou a canção para Roberto que adorou a letra. O naipe de metais e o baixo robusto de Paulo César Barros criam uma levantada funk irresistível em “Ciúme de Você”.
O balanço funk prossegue na faixa seguinte, “Não Há Dinheiro Que Pague", de Renato Barros (1943-2020), líder da banda Renato & Seus Blue Caps. Paulo César Barros faz uma linha de baixo forte e pulsante, que rende ainda em alguns momentos da música, um dueto sensacional com o naipe de metais. Vale destacar os vocais femininos de apoio numa performance simplesmente fantástica, acompanhando no refrão Roberto Carlos, que canta de uma maneira raivosa.
A reta final do álbum segue por uma trilha mais calma através das duas últimas faixas, “O Tempo Vai Apagar” e “Madrasta”. “O Tempo Vai Apagar” é uma parceria de Getúlio Côrtes e Renato Barros, uma balada romântica que embora bonita, guarda um grau de melancolia. A linha melódica de “O Tempo Vai Apagar” é bastante inspirada em “A Whiter Shade Of Pale”, canção da banda inglesa Procol Harum. Lafayette toca não apenas o seu tradicional órgão Hammond B-3, mas faz também um solo de cravo, que dá um toque barroco à canção.
O chega ao fim com “Madrasta”, canção de Renato Teixeira e Beto Ruschel que Roberto Carlos defendeu no 4° Festival da TV Record, em 1968, e que no mesmo ano, o cantor decidiu gravá-la para o disco. A canção destoa de todo o resto do disco, embora mostre o potencial de Roberto com intérprete.
O Inimitável foi um álbum surpreendente à sua época de lançamento ao apresentar um Roberto Carlos com uma proposta musical diferente e renovada. A produção esmerada do disco, os arranjos elaborados, a maturidade nos versos das canções e a aproximação do cantor com a música negra americana, levaram a ala mais “ortodoxa” da MPB e os críticos musicais avessos a Roberto Carlos a perceberem que havia ali um artista em estado de evolução.
A reação do público foi mais do que positiva. Para se ter uma ideia, das doze faixas do álbum, apenas “Madrasta” não alcançou popularidade. O álbum gerou cinco singles, “Eu Te Amo, Te Amo, Te Amo”, “As Canções Que Você Fez Pra Mim”, “Se Você Pensa”, “Ciúme de Você” e “E Não Vou Mais Deixar Você Tão Só”. Dos álbuns lançados por Roberto Carlos nos anos 1960, O Inimitável é o mais vendido, alcançando a marca de 500 mil cópias.
Com O Inimitável, Roberto Carlos iniciou a sua fase em que se aproximou da música negra americana, experimentando a soul music, o funk e o gospel. Essa fase perdurou até 1971 com o álbum Roberto Carlos, o da capa desenhada e que possui a monumental “Detalhes”. No entanto, a importância de O Inimitável na carreira de Roberto não representou apenas o início de uma nova fase musical do cantor, mas o começo de um processo de reorientação na carreira do artista em direção ao romantismo, o que o tornaria o cantor mais popular da música brasileira.
Faixas
Lado A
1 - "E Não Vou Mais Deixar Você Tão Só" (Antônio Marcos)
2 - "Ninguém Vai Tirar Você De Mim" (Hélio Justo/Edson Ribeiro)
3 - "Se Você Pensa" (Roberto Carlos/Erasmo Carlos)
4 - "É Meu, É Meu, É Meu" (Roberto Carlos/Erasmo Carlos)
5 - "Quase Fui Lhe Procurar" (Getúlio Cortes)
6 - "Eu Te Amo, Te Amo, Te Amo" (Roberto Carlos/Erasmo Carlos)
Lado B
1 - "As Canções Que Você Fez Pra Mim" (Roberto Carlos/Erasmo Carlos)
2 - "Nem Mesmo Você" (Helena dos Santos)
3 - "Ciúme de Você" (Luis Ayrão)
4 - "Não Há Dinheiro Que Pague" (Renato Barros)
5 - "O Tempo Vai Apagar" (Getúlio Cortes/Paulo Cézar Barros)
6 - "Madrasta" (Beto Ruschel/Renato Teixeira)
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