quinta-feira, 9 de novembro de 2023

"Frutificar"(Warner,1979), A Cor do Som



No final dos anos 1970, uma banda formada por cinco jovens cabeludos trazia um sopro de novidade para a música instrumental brasileira. Era a banda A Cor Som fazendo uma bem cuidada fusão sonora instrumental que envolvia rock, baião, pop, reggae, choro, jazz, música erudita e frevo elétrico, tudo muito executado e bem produzido. Embora os dois primeiros álbuns da banda tivessem recebido elogios da crítica especializada, as vendas foram muito fracas. A gravadora não via outra alternativa senão a banda gravar pelo menos algumas canções cantadas, caso contrário seria dispensada. E foi o terceiro álbum, Frutificar (1979), quem salvou a banda da dispensa, ao trazer entre as suas dez músicas, três músicas cantadas e que se tornaram grandes sucessos nas paradas de rádio do Brasil. A Cor do Som não só não foi dispensada como teve o seu contrato renovado. 

O embrião d'A Cor do Som começou a ser formulado por volta de 1975, quando Moraes Moreira (1947-2020) deixou os Novos Baianos para seguir em carreira solo. Pouco depois, ainda no mesmo ano, o baixista Dadi Carvalho deixou também a banda. Não demorou muito e foi convidado por Moraes para integrar a sua banda de apoio para acompanhá-lo em shows no seu primeiro disco solo que estava prestes a gravar. Completaram a banda o guitarrista Armandinho Macedo (do Trio Elétrico Dodô & Osmar) músico que Moraes havia levado de Salvador para o Rio de Janeiro) e o baterista Gustavo Schroeter (ex-A Bolha), uma indicação de Dadi. 

As gravações do primeiro disco de Moraes e os shows que tocaram acompanhando o cantor, deram um grande entrosamento entre Armandinho, Dadi e Gustavo, e despertaram nos três o desejo de desenvolverem um trabalho juntos, com foco na música instrumental. Para completar a banda, chamaram o tecladista Mu Carvalho, irmão de Dadi e que havia tocado numa música do primeiro disco solo de Moraes.

Armandinho Macedo Dadi Carvalho e Gustavo Schroeter em detalhe da contracapa
do primeiro álbum solo de Moraes Moreira. Trio participou como músicos
de estúdios da gravação do disco e acompanhou Moares em turnê.

Em 1977, o novo grupo estava formado e foi batizado de A Cor do Som, mesmo nome de um núcleo dentro da banda Novos Baianos que era integrado por Dadi, pelo guitarrista Pepeu Gomes, o baterista Jorginho e o percussionista Baixinho. O nome era título de uma antiga canção de Luiz Galvão e Moraes Moreira, líderes dos Novos Baianos. Dadi chegou a consultar Galvão para usar o nome, e este autorizou.

A primeira grande exposição em público da banda A Cor do Som foi no 1° Festival Nacional de Choro, promovido pela TV Bandeirantes, em São Paulo, onde o grupo concorreu com a música "Espírito Infantil" (de Mu Carvalho), classificada em 5° lugar. 

No mesmo ano, a banda gravou uma fita demo, com as músicas "Brejeiro" (de Ernesto Nazareth) e "Double Morse" (de Osmar Macedo, pai do Armandinho, que depois ganhou letra e virou "Pombo Correio", gravada por Moraes Moreira). A fita foi entregue a Sérgio de Carvalho (1949 – 2019), irmão de Dadi e Mu, e na época produtor musical da gravadora PolyGram. Sérgio tentou viabilizar um contrato para a banda com a Polygram. Embora os diretores tenham reconhecido o talento da banda, acharam o tipo de som da banda pouco comercial.

Se a Polygram não quis, houve quem quisesse A Cor do Som: a gravadora Warner. A companhia havia se instalado no Brasil em 1976, e já havia contratado estrelas como Raul Seixas e Gilberto Gil, e gente nova como As Frenéticas. O diretor da recém-instalada gravadora, André Midani, ex-diretor da gravadora Philips, já conhecia Dadi. Midani ouviu a fita demo, gostou do que ouviu e contratou a banda para três discos. Ainda em 1977, A Cor doSom lançou o seu primeiro e autointitulado álbum de estúdio, totalmente instrumental e que foi muito bem recebido pela crítica na época.

Detalhe do encarte do álbum Frutificar com fotos dos membros
d'A Cor do Som  nas sessões de gravação do álbum.

Em 1978, A Cor do Som se apresentou no Festival de Jazz de Montreaux, na Suíça. O show foi gravado e no mesmo ano o registro foi lançado no segundo álbum da banda, A Cor do Som Ao Vivo no Montreux International Jazz Festival, um trabalho sensacional que mostra o potencial da banda no palco, foi bastante elogiado pela crítica musical e marcou a estreia do percussionista Ary Dias como membro da banda. 

Apesar de elogiados pela imprensa na época, os dois primeiros álbuns lançados pela A Cor do Som venderam pouco. É possível que as baixas vendas se devam ao fato de serem discos de música instrumental. A companhia alertou os membros da banda de que se continuasse naquele jeito, o grupo seria dispensado, pois, não estava compensando o investimento. Para o terceiro álbum, a companhia aconselhou que a banda incluísse pelo menos algumas canções cantadas, numa tentativa de tornar viável comercialmente os discos do grupo. 

Os integrantes d'A Cor do Som recorreram à ajuda de amigos compositores em busca de músicas com letras. Caetano Veloso forneceu a letra de "Beleza Pura", até aquele momento inédita. Gilberto Gil cooperou com "Abri A Porta", também inédita e que ele compôs em parceria com Dominguinhos. Uma terceira música com letra foi "Swing Menina", de autoria de Moraes Moreira e Mu Carvalho. O repertório foi completado por músicas instrumentais. Todo o material do novo álbum foi gravado entre maio e junho de 1979, no estúdio Transamérica, no Rio de Janeiro, sob  produção de Guti Carvalho. 

Intitulado Frutificar, o terceiro álbum d'A Cor do Som foi lançado em 1979, e já mostrava na sua capa ao que veio. A foto da capa traz os cinco integrantes da banda muito bem maquiados, vestidos em roupas de plástico. Mais pareciam uma boyband. O alvo evidentemente era o público feminino. Contudo, os membros da banda não gostaram da capa, especialmente Mu Carvalho, que já confessou isso em entrevistas. 

Apesar da capa parecer de um disco de alguma banda pop descartável adolescente, ela não reflete o seu conteúdo, muito pelo contrário. O álbum apresenta uma banda ainda mais madura na sua proposta musical, que era desenvolver uma música instrumental apoiada na fusão gêneros como rock, pop, baião, jazz, choro e reggae. Mas a grande novidade trazia pelo disco eram as canções cantadas; apesar das limitações vocais dos integrantes da banda, eles saíram-se bem dentro do que se propuseram.

O álbum começa com "Frutificar", faixa instrumental que dá nome ao álbum. Considerada uma obra-prima d'A Cor do Som, "Frutificar" é de autoria de Mu Carvalho, que nesta faixa mostra todo o seu virtuosismo como tecladista e uma influência dos tecladistas do rock progressivo. A faixa começa com uma longa introdução em que Mu se reveza em solos de piano, órgão e sintetizador, através dos quais revela que a música erudita também exerceu influência na sua formação musical. Mas após uma breve pausa depois da introdução, um som de bongô anuncia uma transição para a segunda parte da música, com a entrada de todo o resto da banda, tocando num ritmo que funde rock e baião, com destaque para os solos incríveis de guitarra de Armandinho. 

O início em grande estilo em que A Cor do Som mostra todo o seu potencial em música instrumental é sucedido pela balada pop "Abri A Porta", canção de Gil e Dominguinhos, presenteada ao quinteto e que traz Dadi cantando. A canção, dotada de romantismo nos seus versos, possui trechos que se orientam para um ritmo de reggae pop.

A banda retoma o som instrumental com "Ticaricuriquetô". Música de título esquisito, o seu ritmo é acelerado e traz Armandinho como a figura principal com os seus solos de guitarra. Enquanto isso, o baterista Gustavo e o percusionista Ary são responsáveis por imprimirem com os seus instrumentos toda a força rítmica da faixa.   

Gilberto Gil e Dominguinhos nos nos 1970: autores de "Abri A Porta",
gravada pela A Cor do Som para o álbum Frutificar.

Fechando o lado 1,"Beleza Pura", composta por Caetano, é cantada por Armandinho e exalta a beleza negra. A música é um reflexo da época em que foi composta, final dos anos 1970, quando se buscava a valorização da autoestima dos negros, num momento em que o Brasil vivia sob a palmatória de uma ditadura militar.

O lado 2 de Frutificar abre com a faixa instrumental "Pororocas". A música começa com o som do bandolim de Armandinho, seguido depois pelo triângulo de Ary Dias. Pouco depois, a música toma um ritmo de baião acústico, que conta com a inclusão de um cello e de um violino dando um toque especial. No entanto, a música ganha corpo mais adiante com a entrada da bateria e do baixo. 

"Swingue Menina", a faixa seguinte, é a parceria de Moraes Moreira e Mu Carvalho. A faixa é um reggae pop agradável, com forte apelo radiofônico, e é cantada por Mu. Os versos fazem um interessante jogo fonético entre as palavras reggae (aportuguesado para "régue"), negue, escorregue, segue e persegue. Gilberto Gil faria anos mais tarde um jogo fonético semelhante em "Vamos Fugir", que assim como "Swingue Menina", é um reggae. 

Em "Assanhado", de Jacob do Bandolim (1918 – 1969), Armandinho é a grande estrela da faixa. Além de guitarrista talentosíssimo, Armandinho é um exímio bandolinista, e tem Jacob do Bandolim como uma das suas principais referências artísticas. Desde criança, Armandinho nutriu um amor pelo choro, gênero do qual Jacob é uma das figuras icônicas. E como não poderia deixar de ser, Armandinho mostra toda a sua destreza no bandolim tocando este clássico do choro, é acompanhado por todo o resto da banda e por alguns músicos convidados como Carlinhos da Mocidade (repique e surdo) e Testa (pandeiro). Um desavisado poderia até pensar que ao invés d'A Cor do Som, quem estaria tocando seria o grupo Época de Ouro, antológico conjunto de choro que acompanhava Jacob nos seus discos e apresentações.  

Com nome de uma bela praia do litoral norte da Bahia, "Itacimirim" traz Armandinho se destacando mais uma vez, se revezando na guitarra elétrica, guitarra baiana e bandolim, enquanto Mu Carvalho explora sonoridades cheias de efeitos agudos no seu sintetizador minimoog. Nesta faixa, A Cor do Som conta com o apoio de um naipe de metais. 

Na banda A Cor do Som, além de Armandinho, outro integrante que tem o choro na sua formação musical é Mu Carvalho. Filho de mãe pianista, Mu aprendeu a tocar piano na infância, conheceu a obra dos mestres da música erudita como Mozart e Chopin, mas também um mestre brasileiro do piano popular, Ernesto Nazareth (1863-1934), outro ícone do choro e uma das principais influências do tecladista. Como ambos têm o choro como influência nas suas formações musicais, foi natural que Mu e Armandinho compusessem juntos um choro, "Viver Pra Sorrir", onde o piano elétrico do carioca dialoga muito bem com o bandolim do baiano. 

O álbum termina com uma reprise da faixa-título, porém numa versão mais curta, sem a longa introdução dos teclados de Mu Carvalho. 

A Cor do Som em 1979, em sentido horário: Armandinho Macedo,
Dadi Carvalho, Ary Dias, Gustavo Schroeter e Mu Carvalho, segurando 
cartaz promocional da turnê do disco Frutificar.

A tática em incluir canções cantadas no novo álbum para vender mais discos deu certo. Justamente as únicas canções cantadas presentes no álbum estouraram nas paradas de rádio em todo o Brasil. "Beleza Pura", "Abri A Porta" e "Swing Menina" figuraram entre as mais executadas nas programações radiofônicas e fizeram com que o álbum Frutificar alcançasse a marca de 80 mil cópias vendidas. Para se ter uma ideia, os dois primeiros álbuns da banda, juntos, não chegaram a vender dez mil. Além do mercado brasileiro, Frutificar foi lançado também na Argentina e no Japão. 

O sucesso de "Beleza Pura", "Abri A Porta" e "Swing Menina" tornaram a banda mais famosa e o número de shows na sua agenda aumentou assustadoramente, passando a se apresentar em estádios e arenas. Em 1979, A Cor do Som se apresentou no Parque Ibirapuera, em São Paulo, para um público estimado em 60 mil pessoas. A partir daí, os cinco membros d'A Cor do Som viraram estrelas do rock, com direito a assédio das fãs mais afoitas. 

Um fato que surpreendeu os membros d'A Cor do Som e mostra como o álbum deu visibilidade ao quinteto foi que a gravadora Warner recebeu cartas dos fãs que haviam comprado o disco por causa de "Beleza Pura" e "Abri A Porta", mas que não sabiam que existiam músicas sem letra. Ou seja, isso ratifica o quanto os dois primeiros álbuns do grupo atingiram um público tão diminuto. 

Frutificar gerou três compactos (singles), dois compactos simples lançados em 1979, o primeiro com as canções "Beleza Pura" e "Itacimirim", e o segundo com "Frutificar" e Abri A Porta". O terceiro foi lançado em 1980 como um compacto duplo (com quatro músicas), "Beleza Pura", Abri A Porta", "Swing Menina" e Assanhado". 

O sucesso de Frutificar livrou A Cor do Som de uma possível dispensa da Warner. De "dispensáveis" os cinco integrantes passaram a ser os "queridinhos" dentro da gravadora. A banda repetiu a dose do sucesso com o trabalho seguinte, o álbum Transe Total, que trouxe mais três hits, "Zanzibar", "Palco", (canção de Gilberto Gil) e "Semente do Amor".

Faixas

Lado 1

  1. "Frutificar" (Mu Carvalho)
  2. "Abri A Porta" (Dominguinhos e Gilberto Gil)
  3. "Ticaricuriquetô" (Armandinho)
  4. "Beleza Pura" (Caetano Veloso)

Lado 2

  1. "Pororocas" (Armandinho e Luís Brasil)
  2. "Swing Menina" (Moraes Moreira e Mu Carvalho)
  3. "Assanhado" (Jabob do Bandolim)
  4. "Itacimirim" (Armandinho)
  5. "Viver Para Sorrir" (Armandinho e Mu)
  6. "Frutificar" (Mu)

     

   "Frutificar"  

"Abri A Porta"

"Ticaricuriquetô"

"Beleza Pura"

"Pororocas"

"Swing Menina"

"Assanhado"

"Itacimirim"

"Viver Para Sorrir"

"Frutificar" (reprise)

 

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