Nei Lisboa morou em diversas capitais do país e nos EUA, mas gravou seu primeiro disco aqui mesmo, em 1983. Antes disso já tinha frequentado o Liceu Musical Palestrina e ingressou no Curso de Composição e Regência de UFRGS, isso em 77. Em 79 inicia sua carreira participando em espetáculos teatrais, como "Lado a lado" e "Deu pra ti, anos 70". Esse último virou trilha de filme homônimo em 81, com participação do ator Werner Schünemann (!!!). Nessa época, Nei trabalhava bastante em parceria com o (até então) futuro guitarrista do Engenheiros do Havaí, Augusto Licks, que já estava com ele em "Verde", show que apresentavam em 81.
"Pra viajar no cosmo..." foi gravado e lançado de forma independente, com dinheiro que Nei conseguiu com amigos. Mesmo sendo um disco indie e de estreia, impressiona pela qualidade da gravação, a riqueza de arranjos e instrumentos usados nas canções, como por exemplo:
1. A tribo toda em dia de festa
Primeira faixa, já mostra a que veio. Um reggae cheio de instrumentos de percussão (muitos mesmo!), atabaques, bongôs, agogô, carrilhão, sinos, até barulhinhos de pássaros. Doidera. Tem uma harmonia instrumental muito bem feita, tudo conversando bem. A letra é uma viagem pop, mas já mostra algum tipo de engajamento político de Nei (que depois se torna mais forte). O meio da faixa tem uma quebra de tempo, uma levada mais pop, com melodias jazzy, quebra essa bem característica das faixas desse disco. Essa entrou no "Deu pra ti, anos 70".
2. Me chama de Robert
Essa faixa é demais, letra extremamente debochada e hedonista ("Quando bebo bebo até cair, quando fumo viro chaminé"), um frevinho nervoso (meio marchinha de carnaval, também), que também tem uma quebra de tempo incidental, um 4/4 bem lentinho, genial. Acho que é a faixa mais divertida do disco. Uma verdadeira ode aos vícios, diversão, prazeres e ressacas.
3. Não me pergunte a hora
Mais lentinha, uma coisa meio blues, meio jazz, bem mais melódica que as anteriores e uma das mais dramáticas. Com um tom romântico/nostálgico no som e na letra, tem dois belos solos de piano e guitarra, no melhor estilo "piano bar". Essa, aliás, foi feita em parceria com o Licks.
4. Síndrome de Abstinência
Essa tem caráter bem regional, pelo menos na estética do som, lembra algo muito popular da região dos pampas, Paraguai (que aliás está na letra). A letra é genial porque de forma bem sutil Nei fala de uma espécie de "seca" de maconha ("Lembro dos tempos de fartura, Maria, Joana, todo mundo tinha..."). Um cool jazz incidental traduz bem a "viagem" do cara. Ou a falta dela, rs. Maravilhoso exemplo de como Nei usa referências regionais combinadas com temas globais.
5. Doody II
Som mais melancólico, intimista, apenas violão e voz. Parece que Nei faz algum tipo de auto reflexão na letra, fala de se olhar no espelho. Outra que entrou no "Deu pra ti, anos 70".
6. Pra viajar no cosmo não precisa gasolina
Outra parceria de Nei e Licks. Tem um pouco da pegada de blues/jazz de "Não me pergunte a hora", um tanto mais bem arranjada, mais complexa em harmonia, mas também tem uma roupagem mais pop. Além de uma guitarrinha bem blues do Licks. A letra é bem sarcástica, também com uma conotação bem mais política ("O povo tem fome, o povo quer comer"). Aliás, o Nei era irmão do Luiz Eurico Tejera Lisbôa, perseguido e desaparecido político durante o regime militar dos anos 60.
7. No, No Chance
Canção de Luiz Carlos Galli, o "Boina", compositor gaúcho amigo e parceiro de Nei e Licks ("Verdes" era uma parceria entre os três). Cool jazz bem comportado, é na verdade uma grande piada, porque a letra diz basicamente "I have no chance in jazz, because a sing brazilian songs", e aquele jazzínho maroto de fundo. Aí vem o melhor, quando ele canta "I sing the samba" o tempo quebra num 2/4 sincopado, e quando ele canta "I sing the frevo", o frevo come solto, caindo sempre de volta pro jazz. Simplesmente genial.
8. Rabo de Foguete
Minha faixa favorita. Que coisa linda a harmonia entre teclados, guitarra e baixo. Aliás, todos os instrumentos aqui merecem atenção. Os riffs precisos de guitarra, o teclado que "leva" o som, uma linha de baixo sofisticadíssima. E a bateria, então? Muito bem marcada, dinâmica, cheia de "truques". Não sei descrever bem a estética, mas é um som bem positivo, marcação forte de chimbal (no melhor estilo "bate estaca"), melodias suaves, harmonias jazzísticas, sei lá. Talvez "fusion melódico brasileiro", kkkkk! E o melhor, a letra fala sobre uma mina doida, dessas que bebe, fuma, fala palavrão e arruma briga, foi escrita em parceria com um tal de Iotomar Polsko.
9. Exaltação
Mais uma regionalista, no que parece ser literalmente uma exaltação ao chimarrão, ou melhor, a erva que vai na bebida, o chimarrão Crioulo. Basicamente isso, são bem bacanas os arranjos de violões, lembra mesmo (se eu não estiver bem enganado) algo como o som da catira.
10. Sinal Azul
Essa faixa tem clima mais ameno, também mais inclinada ao popular e regional, composta por Nei, Licks, Glauco Sagebin (tecladista de Nei) e Peninha (não sei se é o mesmo de "Sonhos"). A letra, porém, é bem tropicalista, mistura índios com anjos e Exu e blue jeans. Parece uma canção que nos lembra que somos todos iguais, nesse sinal azul... digo, planeta azul. Tem um solo lindo de piano no final, um piano bem "campestre", do Glauco.
11. Água Benta
A última faixa é bem animada, tem um instrumental foda também, me lembra o fusion/jazz/soul de bandas como Azymuth e Grupo Medusa, cheios de virtuose e feeling, tempos quebrados. A letra é totalmente naturalista (óbvio), fala da água, da vida, do planeta e do corpo humano. Composta por Nei, Licks e um tal Clóvis Frimm. Fecha bem o disco, é bem pra cima, e mostra o melhor da banda...
Que infelizmente eu não consegui descobrir quem são (fora o Glauco Sagebin). Infelizmente tem pouca informação na web sobre esse disco. Mas vou caçar essa e prometo que faço um post extra. Os títulos das das faixas também são links pras letras. Dá pra ouvir ele na íntegra no YouTube (vídeo abaixo). Espero que tenham gostado. Comentem, por favor. No próximo post o segundo disco, "Noves Fora", de 1984.
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