Hunter é ao mesmo tempo uma procura e uma afirmação de liberdade – de género, de vida, sexual e social. É um grande manifesto musical e é, seguramente, um dos melhores discos do ano.

O percurso até aqui não era apenas auspicioso, era imaculado. O primeiro álbum, homónimo, foi editado há já sete anos e recebeu logo uma nomeação para, entre outras distinções, álbum do ano dos reputados prémios Mercury (britânicos). Justamente, porque era uma estreia afirmativa, de uma compositora, cantora e guitarrista de corpo inteiro, que chegou ser muito comparada à sua conterrânea inglesa PJ Harvey. Seguiram-se One Breath (2013), segundo álbum que confirmou os bons indícios da estreia, e Strange Weather (2014), um EP de versões de FKA Twigs, Suicide, David Bowie, Keren Ann e Connan Mockasin, no qual David Byrne cantou em duas das cinco canções.

Eis que Anna Calvi chega a Hunter, cinco anos depois do segundo álbum, sete anos depois do primeiro e quatro anos depois do EP de covers (houve ainda mais um EP, ainda não mencionado, gravado ao vivo e editado em fevereiro de 2017).

Hoje com 37 anos, Anna Calvi move-se num território curioso: é uma artista relativamente consensual no universo indie, tem a crítica a seu lado, mas não teve ainda o reconhecimento pop que a grandeza das canções talvez justificasse. E apesar de Hunter ter-se estreado nos “tops” britânicos com mais notoriedade do que os antecessores, à partida não será este o disco que tornará o nome de Anna Calvi globalmente popular. O que é uma pena, porque trata-se possivelmente de um dos melhores discos feitos nos últimos anos e seguramente um dos melhores álbuns editados este ano. Talvez o reconhecimento aumente nos próximos meses com a digressão de apresentação do álbum, que passará por Portugal, com concertos dia 19 de outubro no Hard Club, no Porto, e no dia seguinte no renovado Cineteatro Capitólio, em Lisboa.

Em Hunter, ouvem-se influências díspares, da urgência e poder da relação guitarra-voz de PJ Harvey (a quem já foi muito comparada), à androgenia de David Bowie, passando mais vagamente pela pulsão dançante do rock dos Talking Heads (do seu amigo David Byrne) e pela apologia de libertação feminista e sexual que se ouve, entre muitas outras coisas, em alguns dos temas de Patti Smith. A influência maior, contudo, vem de outro lado e de um homem, arrisco dizer: a tensão latente – às vezes sensual, às vezes sexual, às vezes quase violenta – é herdeira da que se ouve na música de Nick Cave & the Bad Seeds. Não é por acaso, aliás, que Martyn P. Casey dos Bad Seeds toque baixo neste disco e que Nick Launay, que já produziu discos dessa trupe, tenha sido convocado para ajudar. Dito isto, o álbum define e afirma, mais até do que os antecessores, uma identidade própria, uma sonoridade Anna Calvi, ao mesmo tempo clássica e moderna, devedora das lições do rock como grito social urgente (não burguês, não primaveril, mas impulsivo, afirmativo), incorporando ainda assim algum experimentalismo e técnicas de produção de som modernas.

Hunter não é longo, tem dez faixas que duram perto de três quartos de hora. Numa era em que alguns artistas, nomeadamente do hip hop, estendem exageradamente os seus discos para exponenciar as audições (“plays”) em streaming, é refrescante ouvir um álbum sem pontas soltas, limpo até ao osso, com uma sonoridade coerente do primeiro ao último segundo e onde não se ouve uma única faixa dispensável.

A primeira metade de Hunter é de antologia e regista algumas das melhores canções deste ano. Há “As a Man” como legitimação da androgenia, com os sussurros poderosos e ofegantes com que Anna Calvi pronuncia as palavras que dão título à canção. Há mais respiração ofegante e uma sobriedade encantadora no início da canção que dá título ao disco, Hunter. E há ainda uma voz que se ergue (até no volume) na mais acelerada e até dançante “Don’t Beat the Girl Out of My Boy”, que termina em gritos que não custa ouvir.

Não exageramos quando dizemos que o primeiro trio de canções já tornaria Hunter um disco suficientemente bom, mas as sete canções que se seguem, sendo quase tão pouco palavrosas como as anteriores (a voz serve para para acompanhar e elevar a centralidade da tensão rítmica) e não sendo tão memoráveis, são também elas inatacáveis, destacando-se “Indies or Paradise” com a guitarra de Anna Calvi em modo rock rasgado e ruidoso; “Chain”, com início mais dançável mas na segunda metade com alguns dos melhores riffs de guitarra do ano (não precisam de ser espalhafatosos para isso, basta terem apuro); e ainda “Away”, menos expansiva e mais íntima, de uma beleza arrebatadora.

Aspectos comuns a todas as canções, há alguns: uma tensão sempre latente que já levou Anna Calvi a explicar que está lá porque queria fazer um disco “mais visceral, menos cerebral. Animalista”; a descontrução de convenções antigas sobre o papel da mulher em tiradas feministas, libertadoras e apologistas da androgenia como recusa de “género social”; e uma voz que se ouve sem pruridos, sem receio de sussurrar, de cantar ofegante, de tentar soar afinada mas também de gritar descontroladamente quando é caso disso.

“Queria que a minha voz fosse esta força da natureza porque como mulheres é-nos muitas vezes dito para sermos simpáticas, sossegadas e sorridentes”, explicou recentemente Anna Calvi numa entrevista. Não é, embora pudesse ser, uma indirecta para Pedro Arroja, o comentador famoso pela tirada das “esganiçadas”. É antes um manifesto de intenções. Não é por acaso que no primeiro parágrafo em que descreve Hunter, no seu site oficial, Anna Calvi usa sete vezes a expressão “quero”. Hunter é ao mesmo tempo uma procura e uma afirmação de liberdade — de género, de vida, sexual e social. E é uma procura e uma afirmação belíssima, pensada e provavelmente trabalhada e editada ao pormenor, sem pontas soltas. Estão assim plenamente justificados os cinco anos de espera face ao álbum anterior. Anna Calvi aguardou ter mais coisas para dizer, reinventou-se e fez um álbum pessoal mas que urge ser ouvido, até por ter todos os homens e mulheres como destinatário. Ignorá-lo é imperdoável.