segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Caetano Moreno Zeca Tom Veloso – Ofertório (Ao Vivo) (2018)

O pai, os filhos e o Espírito Santo da música popular brasileira baixaram neste Ofertório em enormíssimo e irrepreensível estilo!

Quando se esperava um disco novo do pai Caetano em 2018, afinal o genial baiano de Santo Amaro da Purificação convocou os três filhos e com eles tem rodado pelo Brasil, América Latina e Europa (chegam a Portugal no primeiro dia de agosto) o concerto de nome Ofertório, que sai agora em formato cd e dvd. O que dizer de tudo isto? O óbvio, como não poderia deixar de ser: a viagem sonora é tremenda e os participantes transportam no sangue (de um mesmo pai e de duas mães) um imenso legado de música popular brasileira dos séculos passado e presente.

Dificilmente ouviremos este ano um disco ao vivo que encerre tantos motivos de satisfação e alegria como este. Como se não bastasse tanta qualidade autoral e interpretativa, Ofertório revela um novo Veloso, digamos assim. Trata-se de Zeca, o mais novo membro de uma família que parece ter nascido de um filão inesgotável de talento. Essa é apenas mais uma boa notícia. Mas há outras, obviamente.

O disco tem uma clara vertente retrospetiva. Caetano Veloso passa em revista canções suas e épocas que ajudou a construir, desde logo através da icónica faixa de abertura. “Alegria, Alegria” não precisa nem precisará nunca de apresentação particular. É uma bandeira tropicalista há muito desfraldada, sempre enxuta no som que tem e na linguagem modernista que apresenta. Se isto é válido para o tema inaugural, o mesmo também poderá ser dito sobre “O Seu Amor”, faixa de Gilberto Gil que aqui, interpretada a quatro vozes, todas masculinas, faz lembrar os tempos em que Caetano, Gil, Bethânia e Gal deram corpo aos tropicalíssimos Doces Bárbaros.

Da lavra do “mano Caetano” temos ainda as velhinhas “O Leãozinho”, “A Tua Presença Morena”, “Gente”, “Força Estranha”, “Alguém Cantando”, “Oração ao Tempo”, “Trem das Cores”, mas também outras mais recentes, embora já com peso de existência histórica, como “Genipapo Absoluto”, “Boas Vindas” ou “Reconvexo”, por exemplo.

No entanto, também neste Ofertório há espaço (e bem largo) para as vozes criadoras dos filhos. Do primogénito Moreno (nascido do casamento de Caetano com Dedé Guedelha) temos, entre outras, “Um Passo à Frente” e “Deusa do Amor”. Moreno tem um estilo próprio e isso nota-se bem. O característico samba de roda da Bahia acompanhado do ritmo de “faca e prato” é a cara do mais velho dos três irmãos. A voz afinada e frágil de Moreno é uma delícia, e também dela se faz o álbum.

Por outro lado, Tom não deixa os seus créditos por mãos alheias. Empresta a sua voz ao quarteto familiar, mas é na instrumentação que parece salientar-se mais. Membro da banda Dônica, de quem, aliás, se espera novidades em 2018, Tom é uma presença fundamental na união sonora deste projeto. Porém, a maior novidade que este Ofertório traz terá de ser, forçosamente, Zeca. É ele o autor e intérprete de uma das mais belas canções do disco, nascendo já com o estatuto de “clássico instantâneo”. Referimo-nos a “Todo Homem”, momento de impressionante e arrepiante beleza. O seu falsete é belo, cristalino, perturbante e profundo. Um nome a ter muito em consideração nos tempos que se avizinham.

É com todos estes ingredientes que se confeciona Ofertório. A palavra-título (e também nome de uma das canções do álbum) tem profundas raízes latinas e eucarísticas, como bem sabemos. Assim, e cumprindo esse tom ancestral de oferecimento, o que Ofertório nos dá, verdadeiramente, é uma valente lição de história da MPB, fundindo passado (que teima em não se deixar apagar) e presente, misturando vozes, afetos, melancolias e tristezas, mas também encantos próprios de quem, alegremente, fez da música uma longa e saudável existência familiar. Até porque, sejamos claros, “a voz de alguém / quando vem do coração” é sempre uma voz primordial. Uma voz que nos toca, que nos penetra, uma voz que faz parte de nós!


 

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