José Mário Branco dá-nos 26 músicas que foram ficando injustamente esquecidas ou não editadas ao longo da sua carreira, num exercício aventureiro que nos leva das cantigas de amigo ao ié-ié.

José Mário Branco, uma das vozes maiores da música portuguesa, está a viver um período especial. Comemorando 50 anos do início da sua actividade musical gravada, viu muitos dos seus discos finalmente reeditados, boa parte do seu arquivo passou a estar disponível online e, agora, lança um disco que faz crescer água na boca.

Falamos de Inéditos (1967-1999), que tem um título algo enganador. Há por aqui alguns inéditos, sim, mas há também muita coisa já editada, com traços em comum: músicas que ou estão há muitíssimo tempo indisponíveis, foram esquecidas pelo tempo ou estavam dispersas em trabalhos atípicos (bandas-sonoras de filmes, por exemplo, ou até um disco de homenagem a Otelo Saraiva de Carvalho).

José Mário nunca foi tipo de ficar parado, na vida ou na obra. Mesmo exilado em Paris, como muitos outros, atirou-se à música, compôs, gravou, produziu. No meio de tanta actividade, fica sempre a sensação de que, de alguma forma, os seus discos em nome próprio foram ficando para segundo plano: o último de originais, o excelente Resistir é Vencer, já é de 2004. Para alguém com uma carreira tão extensa e uma tão profunda influência, de facto, há menos discos de José Mário Branco do que se poderia esperar. Daí que este álbum seja uma bênção, uma oportunidade única para saciarmos a nossa sede de mais música do Mestre, em quantidade e qualidade.

São 26 temas, hora e meia de música. É claro que, com origens tão dispersas tanto cronologicamente como de intenção na sua génese (discos próprios, encomendas específicas, etc), unidade é coisa que não existe em Inéditos. É difícil e até algo descabido analisar este álbum enquanto tal, porque o único conceito é o seu autor. Desligando a análise de uma coerência que seria sempre impossível, podemos mergulhar sem complexos nesta alegre esquizofrenia, que nos mostra bem a amplitude do arsenal lírico e estilístico da voz do célebre “FMI”.

Temos, logo a abrir, sete “cantigas de amigo”, das primeiras gravações editadas de José Mário Branco, em 1967, que dão um curioso tom trovadoresco ao disco. Mas o melhor vem depois, e há de tudo.

Temos temas cantados em francês (o líndíssimo “Le proscrit de 1871”); a marchinha “Fim de Festa”, uma música política da ressaca do 25 de Abril mascarada de tema de amor; a balada profunda “Eu não tenho a certeza”; a esfuziante marcha popular “São João do Porto”; o quarteto instrumental em 3 andamentos “Fantasie Languedocienne”, composto em 1987 mas que surge agora na primeira gravação de estúdio; o rock e o ié-ié  em cinco temas feitos para a banda-sonora do filme de Jorge Silva Melo Agosto, gravados em parte com os Ena Pá 2000; e até um bolero entre o sério e o irónico, com “Alma herida – bolero à maneira de Antonio Machin”, que fecha esta montanha-russa, ou salada russa, que é este Inéditos. Dos muitos e variados terrenos que este enorme vulto pisou ao longo das décadas está apenas ausente o fado, estilo que começou por odiar – sobretudo por razões políticas – mas que aprendeu a amar e a dominar (é o produtor de confiança de longa data de Camané, por exemplo).

Inéditos é uma viagem inesperada, imprevisível e sempre interessante, como o próprio José Mário Branco, um músico e um homem que algumas vezes se perdeu mas nunca se vendeu.

Celebremos o homem e a obra, com este disco que, de uma penada, nos arrebata com a impressionante capacidade de adaptação musical de um génio que merece ser ainda mais destacado. Um álbum que marcará o ano no que toca à edição de discos portugueses.