Sejamos muito bem vindos ao mundo de Kali Uchis, ao qual a artista colombiana nos abre as cortinas de par a par no seu álbum de estreia, Isolation. Com a segurança e elegância de poucos estreantes, consegue de imediato um lugar cativo no universo da pop alternativa, neo-soulr&b e não só.

Na capa do seu primeiro álbum, Isolation, lançado a 6 de abril de 2018, Karly-Marina Loaiza estende-se sobre lençóis de cetim de um azul berrante e encara a audiência de perto, olhos nos olhos, com a sua expressão que conjuga uma pose relaxada e despreocupada, com, simultaneamente, um misto de emoções camufladas no silêncio da sua cara sisuda – tristeza, ânsia, preocupação, frustração, celebração, felicidade. É este equilíbrio controlado entre não dar tudo e dar apenas o suficiente ao seu público que lhe permite o sucesso que tem vindo a conhecer nos últimos meses: em Isolation, convida-nos para o seu misterioso mundo pessoal, e, ao longo de quinze glamurosas faixas que nos levam por um passeio pelas rotas da popneo-soul, r&b e até reggaeton, parece abrir-se em registo de confessionário, mas num tom elegante e calculado, que não nos deixa esquecer que não lemos um diário escrito a lápis e borracha por Karly-Marina, mas sim a sua conversão em canções de Kali Uchis. Há uma aura de mistério invisível que permanece no ar após o terminar da última faixa do álbum, e é a sua genial restrição que nos leva sempre de volta à primeira, sentindo que já a conhecemos mas que queremos sempre conhecer mais do que ela permite.

Kali Uchis não é uma cara nova no mundo das novas tendências de pop r&b norte-americanas: vinda da distante Colômbia, chegou ao norte do continente –  terra “de oportunidades e palmeiras”, como descreve na luxuosa “Miami”, faixa que partilha com a rapper Bia – com uma intenção apenas: fazer música. E, para isso, empregou os seus dotes de relações públicas para travar conhecimento com algumas das cartas mais fortes do baralho, criando alianças que saberia que lhe permitiriam, um dia, lançar um álbum de estreia que soasse a veterana. Porque, de facto, apesar de antecer a Isolation apenas um lançamento sob o nome de Kali Uchis – “Por Vida”, EP de inícos de 2015, cuja produção conta com o auxílio de Tyler the Creator, Kaytranada e Diplo, entre outros – já tinha vindo a emprestar a sua reconhecível voz a variadíssimos projetos musicais que se situavam a diferentes níveis de berra: desde partilhar refrões com Tyler the Creator no álbum flowerboy, de 2017, a nomeações a Grammys com Daniel Caesar – fruto da sua colaboração com o músico em “Get You”, também de 2017, por exemplo. Depois, favor com favor se paga revelou-se a frase chave para a seleção de uma equipa vencedora que chutaria Isolation para um nível de excelência inesperado para uma (aparente) amadora: desde o trabalho de produção, que conta com jogadores como Gorillaz, BadBadNotGood, Thundercat ou Kevin Parker, à própria lista de convocados, completa com nomes como Tyler the Creator, Jorja Smith, Bootsy Collins, Damon Albarn, e muitos, muitos outros.

Mas a força principal que guia Isolation é a própria Kali Uchis, dona de uma voz que nos remete para o timbre delicado de vocalistas de bossa-nova como Astrud Gilberto, divas do jazz a preto e branco como Julie London, e o não-tão distante ano de 2004, em que descobrimos a garra refinada de Amy Winehouse em Frank. São certamente vozes que constam na escola vocal da colombiana, que, tal como algumas das melhores que lhe antecederam, arma-se com o poder da contenção, nunca se descontrolando ou caindo no floreado desnecessário. As palavras de Uchis, sejam elas em inglês ou em espanhol, deslizam-lhe da boca como flechas afiadas que acertam sempre no centro mais prazeroso da nossa escuta, seja ele no coração ou nos ouvidos.

É em “Body Language (Intro)” que somos apresentados a esta voz que dificilmente esqueceremos: o timbre doce de Uchis serpenteia a curta bossinha produzida sublimemente por Thundercat, antes de se lançar no irresistível cool do escapismo sonhador de “Miami”. “Just a Stranger”, que conta com as vocais do menino de ouro do r&b alternativo Steve Lacy, possui um dos refrões mais irresistíveis do álbum, perfeitamente emoldurado pelos coros brincalhões e pela bateria precisa e sumarenta. Um pouco mais adiante, conhecemos o primeiro dos três singles que nascem de Isolation: “Tyrant”, canção de romance pouco ortodoxa que oscila entre o medo de um companheiro que não esteja à altura e a entrega ao calor do momento, ilustrada por um baixo quente e letras que comparam um novo relacionamento com uma confusão de calaidoscópio. O terceiro verso é cantando por Jorja Smith, um dos mais entusiasmantes novos nomes do pop britânico, cujas vocais emotivas contrastam diretamente com a serenidade direta de Uchis.

É difícil procurar destaques num disco em que cada uma das faixas se revela todas as semanas de escuta como uma nova favorita, mas em jeito de apontar cumes memoráveis poder-se-ia enumerar o segundo single, o suave reggaeton “Nuestro Planeta”, na qual Uchis partilha vocais com o seu conterrâneo Reykon, na única música cantada exclusivamente na sua primeira língua; o groove intemporal motown de “Feel Like a Fool”, que reinventa a tradição de transformar corações partidos num alegre balanço completo com sopros, coros, piano e a performance mais solta de Uchis em todo o disco. No entanto, é impossível falar de Isolation sem falar de “After The Storm”, o seu mais célebre single, e, provavelmente, sempre será.

Por onde começar? “After The Storm” une os quatro maiores nomes contidos no universo de Isolation: Uchis, claro, Tyler the Creator, BadBadNotGood e Bootsy Collins, lendário baixista, cantor e mestre do funk – os dedos por detrás das linhas de baixo pulsantes de Parliament-Funkadelic na décade de setenta. Assim, os novatos juntam-se a Collins e, em equipa, criam uma daquelas músicas que aparecem, com sorte, uma vez por ano: uma canção que, mal entra pelo canal auditivo adentro, dificilmente o abandona, e dificilmente a sacudimos da memória durante semanas, que se transformam em meses, que se transformam em anos. “After The Storm” é implacável na aplicação perfeitamente medida das vértices mais afinadas de cada um dos seus colaboradores: os ritmos ondulantes e vincados das baterias, guitarras e teclados de BadBadNotGood, a sofisticação veterana do baixo de Collins, que surge quase em dueto com a linha vocal principal, a absurda facilidade de Tyler the Creator em lançar rimas dos lábios para fora, e, claro, no centro do bolo, a voz de Kali Uchis, que nunca nos soou tão rica, glamurosa e verdadeiramente intemporal, como se a ouvissemos desde sempre, enquanto nos dá lições universais e já ouvidas mil vezes de preservança, força e esperança. Mas mesmo ouvindo algo tão simples como a velha lenga-lenga de que depois da tempestade vem a bonança, desta vez carrega outro peso: o peso de estar associado com uma canção verdadeiramente enorme. Cunhar clássicos com meses de distância é um exercício perigoso: por isso não nos atrevemos a dizê-lo por palavras, mas para bom entendedor, meia palavra bastará.

Simplicidade é, talvez, a chave mestra que abre Isolation a todas as promessas que acaba por cumprir. Ao longo dos seus quarenta e seis minutos de duração, é difícil detetar deslizes objetivos, sendo que conduz sempre a direito, em linha reta, sabendo precisamente onde quer chegar e como. Às vezes, uma boa música é apenas uma música simples; e Isolation comprova essa matriz, oferecendo-nos quinze todas elas, no pior dos casos, apenas boas, e, no melhor, quase ou mesmo perfeitas em todas as arestas. Kali Uchis possui um carisma inconfundível que detetamos à primeira nota que canta, à primeira frase que diz ou à primeira música qu

e encabeça, com o qual poucos nascem e ao qual ainda menos chegam. Quando “Killer”, balada agridoce que fecha Isolation, chega cedo demais ao seu final, temos a certeza absoluta: Uchis estreou-se com um álbum digno de estrelas, porque ela própria nasceu para ser uma. E é tão simples como isto.