Em Oil Of Every Pearl’s Un-Insides, SOPHIE estreia-se finalmente no formato LP e revela-se um dos nomes mais interessantes e revelantes da nova vaga do pop underground britânico.

Podemos cismar se terá sido coincidência o lançamento do muito aguardado álbum de estreia da produtora multi-talentosa escocesa Sophie Xeon, ou SOPHIE, ter aterrado no epicentro de junho, mês eleito para celebrar, reinvidicar e lutar pelos direitos da comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transsexuais). Apesar de ter surgido num vulto de anonimidade e de ser ferozmente insistente na missão de “deixar a música falar por si própria”, foi com “It’s Okay To Cry”, vivificante balada que abre “Oil Of Every Pearl’s Un-Insides, que SOPHIE se revelou ao mundo como não apenas ser humano de carne e osso, em voz e aspeto, mas enquanto pessoa transsexual. O sabor peculiar da pop que tem vindo a produzir, de Glasgow para o mundo, ao longo da última década, seja ele em nome próprio (estreou-se em formato de álbum de compilações com Product, em 2015) ou por entre as sombras do mundo da produção (tendo já trabalhado para colegas da PC Music como Charli XCX ou QT, mas também gigantes como Madonna), fala, sim, por si mesmo. E se falasse, traduzir-se-ia num discurso bizarro, abrasivo, quase violento, pitoresco: belo em categorias que não conseguimos ainda classificar muito bem – diferente. Se a sonoridade que SOPHIE apresenta em Oil Of Every Pearl’s Un-Insides pode toda ser resumida nessa palavra tão abrangente – diferente – também podemos classificá-lo como um refúgio cuidadosamente preparado para receber aqueles que são obrigatoriamente diferenciados pela sociedade.

LGBT Music” é um termo guarda-chuva cunhado para catalogar toda a música que lide, de uma forma ou de outra, com assuntos de foro da comunidade Lésbica, Gay, Bissexual e Transsexual. Curiosamente, ao contrário do que se poderia pensar, lembra-nos a Wikipédia, nem toda a música LGBT tem necessariamente de ser produzida por indivíduos pertencentes à comunidade em si: vejamos, por exemplo, o hino gay “I’m Coming Out”, gravado originalmente pela Diana Ross em 1979, que se multiplicou em significados aquando re-apropriado pela comunidade LGBT americana da década de oitenta. SOPHIE produz “LGBT Music”? Apesar do conteúdo lírico de “Oil Of Every Pearl’s Un-Insides” nunca se entregar a literalidade, podemos procurar pistas na forma como semeia mensagens de otimismo ferrenho (na já mencionada “It’s Okay To Cry”), de transformismo hiper confiante em “Faceshopping” e até a dúvida amedontrada de “Is It Cold In The Water?”. Sem dúvida, serão sentimentos de cariz mais ou menos universal, mas, no solarengo mês de junho, no qual cidades um pouco por todo o mundo se enchem de bandeiras coloridas, festa e luta de uma comunidade ainda severamente marginalizada até no ocidente, a temática explorada em Oil Of Every Pearl’s Un-Insides ganha novo fôlego e SOPHIE comprova merecer o lugar acarinhado que encontrou dentro da comunidade LGBT.

Mas não nos fiquemos por aí: a explosividade da sua música tem pernas suficientes para trepar para fora de qualquer redoma. Temas como “BIPP”, de 2013, ou “Lemonade”, do ano seguinte, já nos tinham dado um cheirinho das possibilidades que os talentos de produção e composição de SOPHIE poderiam oferecer ao universo da música alternativa britânica, possibilidades estas que se viriam a confirmar à medida que o seu currículo aumentava com as convocações sucessivas para auxílio atrás da mesa, particularmente em colaboração com a vanguardista editora londrina PC Music. Mas em Oil Of Every Pearl’s Un-Insides, finalmente somos convidados a mergulhar no mundo de Sophie Xeon em toda a sua fascinante totalidade.

Se o mundo da música pop contemporânea é tão frequentemente contaminado por pastiches, regressões, imitações mascaradas de tributos a lendas-vivas ou lendas-mortas do passado, SOPHIE é o futuro: no seu álbum de estreia, navega por uma estrada inexplorada, por vezes confusa ou mesmo aterradora ao ouvido desabituado, mas não por isso menos aliciante, como um buraco negro de sintetizadores sufocantes, vocais moduladas até mais se assemelharem a presenças robóticas (mas não por isso menos carregadas de paixão ou humanidade), ritmos pulsantes e baixos furiosos. À gentil “It’s Okay To Cry”, segue-se a fantasmagórica “Ponyboy”, na qual a hiper-femininidade e a hiper-masculinidade se fundem numa simbiose protegida pelos baixos alarmantes. Simultaneamente violenta é “Faceshopping”, que mais se assemelha a um manifesto andróide maquinizado de transformidade radical;“my face is the front of shop / my face is the real shop front / my shop is the face is front / i’m real when I shop my face”, profere a sua voz numa calma autoritária. O vídeo que acompanha o single caminha lado a lado com a agressão sonora do tema, num assalto visual desaconselhado para indivíduos suscetíveis a ataques epiléticos.

Mas SOPHIE abre-se como uma concha reluzente numa miríade de ambientes que não refletem apenas a sua energia colérica irresistível: “Infatuation”, mais uma canção de amores perdidos que nas suas mãos experientes ganha novas texturas perfeitamente emolduradas por guinchos de guitarra que elevam a palavra repetida até à exaustão, é um dos momentos mais memoráveis do álbum; assim como “Immaterial”, puro bubblegum em esteróides que se tornará com a maior das facilidades um hino incontornável de todas as festas que já se organizaram para durar para lá das três da madrugada.

Com Oil Of Every Pearl’s Un-Insides, SOPHIE estende-nos um convite para nos perdermos no seu mundo cor-de-rosa, e, por muito alienígena que nos pareça, sentimo-nos acolhidos pela sua mensagem universal de aceitação do nosso eu, mesmo sendo ele um eu que agora vemos robotizado, maquinizado, sincero na sua máscara, autêntico na sua construção. É apenas o início de uma excursão por um caminho que SOPHIE escolheu para si e para nós: o admirável novo mundo do futuro da música pop.