Hair, o musical que conta já com cinco décadas de vida, foi um incómodo piolho nas cabeças bem comportadas e moralistas, obrigando muita gente a coçar os seus escalpes finos e empertigados para que conseguissem perceber, afinal, o que tinha acontecido. Mais do que uma pedrada no charco, Hair  foi uma pedrada social, política, cultural, e por isso se celebra ainda hoje o espírito livre desse momento.

As coisas estavam a mudar e não era apenas em São Francisco. Tudo começou a ficar mais evidente em 1967. Na Lower East Side de Nova Iorque, estranhas criaturas começavam a aparecer em cada esquina. Cabelos longos, roupa colorida, bizarros perfumes, liberdades várias que a expressão peace and love imortalizou. Mas também uma vontade crescente de abolir diferenças raciais, de tornar pública a convicção anti-guerra (o efeito Vietnam tornava-se insuportável) que já ninguém conseguia esconder. Tudo isso e muita droga, experimentações e usos em variedade e quantidade suficientes para que o ar tivesse um novo aroma: o da liberdade.

Foi ainda em 1967 que a dupla Jim Rado e Gerome Ragni começou a tirar proveito desses novos tempos. A ideia de criar um musical, à maneira da Broadway, ganhou dimensão e com a boa ajuda de Galt MacDermot na feitura das músicas, chegaram ao grande palco da cidade novaiorquina a 29 de abril de 1968, aí perdurando durante cerca de 1750 apresentações públicas. No entanto, e ainda hoje, o revivalismo hairiano vai permanecendo mais ou menos ativo. As produções foram-se espalhando por vários continentes. Argentina, Austrália, Áustria, Brasil, Canadá, Dinamarca, Finlândia, Itália, Japão, Noruega e Suécia são apenas alguns exemplos de países que aderiram à moda dos cabeludos hippies em pouco mais de ano e meio. Nem a comunista Jugoslávia resistiu ao impacto de Hair. O sucesso ganhou escala mundial e a chave dessa esmagadora popularidade teve como base dois ou três aspetos importantes: a simplicidade do que nele vinha dito, as melodias intemporais das suas perfeitas canções, e uma enorme vontade de eleger a felicidade como o mais importante caminho a seguir.

Quem não reconhece, logo aos primeiros sons, canções como “Aquarius”, “Donna”, “Sodomy” e os seus icónicos versos (Sodomy / Fellatio / Cunnilingus / Pederasty / Father, why do these words sound so nasty? / Masturbation / Can be fun / Join the holy orgy / Kama Sutra / Everyone!), “Manchester England”, “I’m Black”, “Ain’t Got No”, “Air”, “I Got Life”, “Hair”, “My Conviction”, “Easy To Be Hard”, “Frank Mills”, “Where Do I Go?”, “Good Morning Starshine” ou “Let The Sunshine In”? São muitas, como se vê, e todas fazem parte da grandeza ímpar de Hair.

É bastante curioso o facto de, nos tempos iniciais de Hair, podermos encontrar, no lote de participantes da peça, os nomes de Diane Keaton, Michael Harris e Meat Loaf, por exemplo, todos em (pré) início de carreira. No entanto, e para além disso, a verdade é que Hair foi um enorme acontecimento, e a crítica especializada, na sua esmagadora maioria, rendeu-se à qualidade daquilo a que assistiram e nem mesmo as polémicas cenas de nudez, linguagem menos adequada, incitamento ao uso de drogas, amor livre e apelo ao fim do belicismo americano foram suficientes para que as vozes mais conservadoras (e sempre muito poderosas) conseguissem silenciar a onda que se foi agigantando em finais dos anos sessenta. Foi uma vitória categórica a todos os níveis, portanto, e que se mantém triunfal até aos dias que correm!

Ouvir Hair em 2018 é ainda uma experiência extraordinária. E se quisermos ir um pouco mais a fundo na tentativa de um melhor conhecimento da tentacular presença da peça no mundo, ficaremos não só a saber das dezenas de produções discográficas existentes, mas também do incontornável filme de Miloš Forman, estreado em 1979. Em tudo o que se leia, ouça ou veja, a magia de Hair permanece firme e gloriosa, jovem e fresca, apesar do seu meio século de vida. Celebremos Hair como uma das mais estupendas vitórias do homem livre, do homem vivo, do homem bom, do homem pacífico, do homem que mandou às urtiga estigmas raciais e sexuais, do homem que aspirou à plenitude das suas vontades e dos seus desejos mais fraternos. A receita está dada e é simples: basta deixar o sol entrar!