domingo, 1 de dezembro de 2024

“Profana” (RCA Victor, 1984), Gal Costa

 


Após 16 anos na Philips, Gal Costa trocou de gravadora e assinou contrato com a RCA. Desde o seu álbum Gal Tropical (1979), Gal engatou uma sequência de álbuns que foram sucesso de público e crítica, elevando a cantora baiana de musa tropicalista para cantora de massa e grande vendedora de discos. Foi com esse status de estrela da MPB campeã em vendas que Gal Costa chegou à sua nova companhia fonográfica. 

Para gravar seu primeiro álbum pela RCA, Gal Costa cercou-se de pessoas de alto calibre da música brasileira, como o produtor Mariozinho Rocha, o músico e arranjador Lincoln Olivetti (1954-2015), a banda Roupa Nova (nas faixas “Chuva de Prata” e “O Revólver do Meu Sonho”), o saxofonista Léo Gandelman, o trombonista Serginho Trombone, o baterista Sérgio Della Monica (ex-Rita Lee & Tutti Frutti), o guitarrista Rick Ferreira, entre outros músicos talentosos. 

Lançado em novembro de 1984, Profana é um álbum marcado por uma diversidade musical notável. Se no álbum anterior houve um certo predomínio do romantismo, em Profana ele se resume a duas das doze faixas do disco. As demais faixas se dividem entre forró, frevo, rock e marchas carnavalescas, com canções de artistas consagrados como Caetano Veloso, Moraes Moreira (1947-2020), Jackson do Pandeiro (1919-1982), Gonzaguinha (1945-1991) e Gilberto Gil. 

A produção meticulosa de Mariozinho Rocha empregou um equilíbrio sofisticado entre instrumentos tradicionais e eletrônicos, capturando com precisão as tendências musicais daquele período. 

Um dado interessante neste disco é que Gal Costa voltou a flertar com o rock, um estilo que não é estranho para a cantora. Ela já havia experimentado o estilo na época do tropicalismo, no final dos anos 1960. Contudo, ao adentrar os anos 1970, quando tomou outros rumos, o rock praticamente desapareceu de seu repertório. Em Profana, Gal voltou a se aproximar do rock com vigor, provavelmente motivada pela nova geração do rock brasileiro que vinha ganhando projeção a partir de 1982 com o estouro da banda Blitz. Caetano e Gil, seus amigos de fé e irmãos de vida, também experimentaram com o rock em seus discos lançados naquele ano de 1984, respectivamente Velô e RaçaHumana.

Detalhe da contracapa do álbum Profana.

O álbum abre com “Vaca Profana”, composta por Caetano Veloso atendendo a um pedido de Gal Costa. Caetano estava em Barcelona, na Espanha, quando compôs “Vaca Profana”, o que explica a letra ter tantas referências à cultura espanhola, como Pablo Picasso (1881-1973), Movida Madrileña, Gaudí (1852-1926) e expressões em espanhol. A letra é cheia de metáforas, simbolismos e enigmas, permitindo as mais diversas interpretações. No entanto, a canção teve sua execução pública proibida pela Censura Federal por ser considerada ofensiva “à moral e aos bons costumes” devido à citação da palavra “tetas” e ao verso “gotas de leite bom na minha cara”, considerados de teor pornográfico. Os versos complexos de Caetano, cantados brilhantemente por Gal Costa, são embalados por um rock vigoroso, como há muito tempo a baiana não cantava desde sua fase tropicalista. 

Depois de um rock, Gal emenda com o xote estilizado de “Ave Nossa”, de Moraes Moreira e Béu Machado, cuja letra faz um trocadilho com o poema “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias (1823-1864), escrito por ele em 1843: “Minha terra tem palmeiras / Onde canta o sabiá / As aves que aqui gorjeiam / Não gorjeiam como lá”, dizem os primeiros versos. Em “Ave Nossa”, esses versos ganham uma nova versão: “Minha terra tem pauleira / Desencanta e faz chorar / Mas tem um fio de esperança / Quando canta e quando dança / No assobio do sabiá”. 

O romantismo, tão presente nos álbuns anteriores, não poderia faltar em Profana. Embora em minoria, com apenas duas faixas, está muito bem representado. “Nada Mais”, primeiro momento romântico do disco, é uma versão em português de “Lately”, de Stevie Wonder, com letra adaptada por Ronaldo Bastos. Nesta canção, Gal Costa mostra toda sua capacidade como intérprete e o porquê de ser considerada uma das maiores cantoras da música popular brasileira de todos os tempos. 

Profana traz Gal Costa numa interpretação magistral em "Nada Mais",
versão em português de "Lately", canção de Stevie Wonder.

Em Profana, Gal Costa manteve uma tendência que vinha desde Gal Tropical e se repetiu nos discos seguintes: gravar pelo menos uma canção carnavalesca. O primeiro momento momesco do álbum é “Atrás da Luminosidade”, que encerra o lado 1 do disco. É uma canção sobre uma jornada sem rumo definido, guiada pelo desejo de experimentar a liberdade e a alegria do momento. O eu lírico se sente atraído pela energia e vitalidade da cidade, buscando a felicidade em cada esquina e interação. Ele encontra satisfação na simplicidade de ser observado, como um balão que sobe ao céu, e na eletricidade das conexões humanas e celebrações coletivas. 

Em clima de folia momesca, o lado 2 começa com a provocativa “Onde Está O Dinheiro”, uma marcha carnavalesca gravada originalmente em 1937 por Aurora Miranda (1915-2005), irmã de Carmen Miranda (1909-1955). Os versos, muito bem-humorados, são na verdade uma crítica às falcatruas dos políticos mal-intencionados que enriquecem com o dinheiro público. E pensar que ela foi composta em 1937. 

O romantismo retorna em “Chuva de Prata”, um bolero “açucaradíssimo” de Ed Wilson (1945-2010) e Ronaldo Bastos, no qual Gal Costa canta divinamente, acompanhada pelos membros do Roupa Nova fazendo o coro. A canção celebra um amor romântico e idealizado, evocando a imagem poética da lua e da chuva para ilustrar a paixão e o desejo. Fala sobre a esperança e a espera por um amor intenso e duradouro, simbolizado por um beijo molhado de luz. Convida a se entregar ao amor sem medo, acreditando na beleza e profundidade dos sentimentos.

Para o álbum Profana, Gal Costa regravou "Onde Está O Dinheiro",
marcha carnavalesca que foi sucesso na voz de Aurora Miranda, em 1937.

Na sequência, Gal Costa mostra mais uma vez sua versatilidade como cantora num medley de forró com trechos de três músicas numa mesma faixa: “Cabeça Feita”, “Tililingo” e “Tem Pouca Diferença”, esta última com participação especial de Luiz Gonzaga (1912-1989). 

Composta por Djavan, “Topázio” aborda a complexidade dos sentimentos humanos. Gal canta versos que exploram temas como amor, desejo e a busca por compreensão e equilíbrio emocional. A canção revela a dualidade entre a fragilidade e a força presente nas relações humanas. Embora seja uma composição de Djavan, ele próprio gravou “Topázio” depois de Gal, em 1986, para o seu disco Meu Lado. 

O álbum termina com o rock saudosista “O Revólver do Meu Sonho”, uma parceria de Waly Salomão (1943-2003), Roberto Frejat (na época, guitarrista do Barão Vermelho) e Gilberto Gil. Nesta faixa, Gal é acompanhada novamente pelo Roupa Nova como banda de apoio. A letra mistura referências culturais e pessoais para explorar a nostalgia, ao fazer citações que remetem à juventude de Gal: Beatles, Arembepe, Woodstock e verão da Bahia. Os versos fazem algumas citações de outras canções memoráveis como “Você por acaso esqueceu a buzina do vapor barato?” (“Vapor Barato”) e “As curvas da estrada de Santos / O motor fervia, o carro rugia, meu amor” (“As Curvas da Estrada de Santos”). 

A crítica musical recebeu bem o álbum Profana. Destacou a diversidade musical e a energia renovada de Gal Costa, bem como sua qualidade vocal e sua capacidade de transitar por estilos diferentes com desenvoltura. Foi visto como o melhor álbum da cantora desde Fantasia, lançado em 1981. 

Roupa Nova, em 1984, quando fez participações especiais em
duas faixas de Profana"Chuva de Prata" e "O Revolver do Meu sonho".

Em sua resenha sobre Profana na revista Veja, o jornalista Okky de Souza saudou a volta da “intérprete esfuziante e brincalhona” depois da “fase Dolores Duran”. Rosângela Petta, da revista Isto É, afirmou que o álbum de Gal é uma “retomada impressionante do velho pique” e o “retorno à mais pura interpretação, aliada a uma fantástica miscelânea de guitarras e arranjos caprichadíssimos”. 

Das dez faixas de Profana, as que alcançaram grande sucesso foram “Chuva de Prata”, “Nada Mais”, “Onde Está O Dinheiro” e “Vaca Profana”. Duas faixas fizeram parte de trilhas sonoras de novelas da Globo: “Nada Mais” em Corpo a Corpo (1984), de Gilberto Braga (1945-2021), e “Chuva de Prata” em Um Sonho a Mais (1985), de Daniel Más (1943-1989). O sucesso dessas canções nas paradas de rádio impulsionou as vendas de Profana, que alcançou a marca de 400 mil cópias. Em meados de 1985, Gal Costa ganhou um programa especial de TV através da Rede Manchete, o Gal Costa Especial – Profana. 

Em setembro de 1985, ano em que Gal celebrou 40 anos de vida, a cantora baiana lançou Bem Bom, mais um álbum de grande êxito comercial que emplacou sucessos como “Sorte” (dueto com Caetano Veloso) e “Um Dia de Domingo” (dueto com Tim Maia), esta última um dos maiores sucessos radiofônicos do Brasil naquele ano. Com Bem Bom, Gal Costa fechou o ciclo de álbuns com altos índices de vendas. A partir de então, seus discos seguiram vendagens mais modestas.

 

Faixas

Lado 1

1.      "Vaca Profana" (Caetano Veloso)

2.      "Ave Nossa" (Moraes Moreira - Beu Machado)

3.      "Nada Mais" ("Lately") (Stevie Wonder - versão de Ronaldo Bastos)

4.      "Atrás da Luminosidade" (Luiz Carlos Sá - Teca Calazans)

5.      "De Volta Ao Começo" (Gonzaga Jr)

 

Lado 2

6.      "Onde Está O Dinheiro?" (José Maria de Abreu - Francisco Mattoso - Paulo Barbosa)

7.      "Chuva de Prata" - Participação Especial Roupa Nova (Ed Wilson - Ronaldo Bastos)

8.      "Cabeça Feita (Jackson do Pandeiro - Sebastião Batista da Silva)/ "Tililingo" (Almira Castilho) / "Tem Pouca Diferença" (Durval Vieira)

9.      "Topázio" (Djavan)

10.  "O Revólver do Meu Sonho" (Waly Salomão - Roberto Frejat - Gilberto Gil)


Ouça na íntegra o álbum Profana.

"Vaca Profana" (Gal Costa em
apresentação de TV, em 1984)

"Nada Mais", (videoclipe
exibido no "Fantástico",
TV Globo, em 1984)


"Chuva de Prata" (videoclipe
exibido no "Fantástico", 
TV Globo, em 1985)

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