CONJUNTO DIAMANTES NEGROS
DISCOGRAFIA
O DIA EM QUE TE VI [7"EP, Alvorada, 1966]
COMPILAÇÕES
BIOGRAFIA DO POP-ROCK [2xCD, Movieplay, 1997]
MUSIC BOX 60'S VOL.11 [CD, JN/Movieplay, 1997]
ALL YOU NEED IS LISBOA [CD, EMI-VC, 2004]
Desde a sua estreia em Real Life que esperamos de Joan Wasser um outro álbum tão repleto de atributos e predicados. No primeiro longa duração de Joan As Police Woman (é este o nome artístico escolhido pela senhora Wasser), a cantora e compositora norte americana mostrava um fibra musical quase imaculada, vibrante, sublime na forma de expressar inquietação e dor, desalento e mágoa, tentando desesperadamente despertar para a rotina da existência, sobretudo quando, depois de passar pelas chamas do inferno, lá vinha a vida reclamar de novo a sua presença, de preferência com a cara alegre de outros tempos. A particular visão dos seus sentimentos de perda, no já distante disco inicial (2006), surgia sublimada por belas e eternas canções, como se constatará facilmente ao ouvirmos, mesmo que pela primeira vez, “The Ride” ou “Eternal Flame”. Esses dois temas bastarão para não nos alongarmos mais nos exemplos. Seguiram-se vários discos interessantes, um deles em parceria com Benjamin Lazar Davis (Let It Be You, de 2016) e agora, subitamente, Joan As Police Woman regressa nestes dias frios de inverno. Vem densa, libidinosa, arrasadora, sublime. Um regresso aos parâmetros de qualidade de Real Life? Sim, mas são diferentes as premissas do novíssimo Damned Devotian.
Depois de algumas audições atentas, as impressões são francamente boas. Talvez a grande diferença, se tivermos em conta os discos anteriores ainda aqui não mencionados (The Classic, The Deep Field, Cover e To Survive), possa ser encontrada ao nível da bateria e da percussão, ao ponto do elemento rítmico ser mesmo a base de muitas das doze canções de Damned Devotion. Onde noutros tempos e noutros temas o piano e a guitarra ganhavam maior destaque (“To America”, “To Be Loved”, “Real Life” ou “The Ride”, entre tantas outras), agora a abordagem rítmica impõe a sua presença de forma notória. Mas afastemos o previsível engano das nossas cabeças: Damned Devotion não tem composições alegres nem está repleto de momentos que nos empurrem para a dança. Nada disso. Antes pelo contrário. A vibração soul, que é também uma das marcas primordiais de Joan As Police Woman, essa mantém-se, mas as batidas são mais trabalhadas no sentido de criar outros efeitos marcantes, que não o de simplesmente fazer mexer o corpo. São baladas (mas não são verdadeiras baladas, no entanto) com algum experimentalismo, ruídos breves mas incisivos, sons que misturam ambientes distintos, e onde a palavra cantada não pode ser esquecida. E aí, nesse terreno que Joan As Police Woman manobra com pulso firme e poético ao mesmo tempo, temos a maior das virtudes do álbum. Ele é um tratado sobre a angústia, sobre a introspeção, sobre a paixão e o ciúme (fiel e sempre presente companheiro das influências de cupido), sobre a vida. Sobre a condição humana, se quisermos generalizar um pouco.
Se tivéssemos de escolher as canções mais orelhudas deste mais recente trabalho de Joan As Police Woman, então talvez devêssemos nomear “Warning Bell” (aquele timbre so cool e so soft que só Joan Wasser consegue fazer ecoar é sempre tão arrepiante…), “Tell Me”, “The Silence” e “What Was It Like”, enorme e agradável surpresa que surge lá mais para o final do disco. São todas, cada uma à sua maneira, belíssimas composições, todas merecedoras de ouro artístico. No entanto, e muito provavelmente, não teriam o rasgo de génio que têm sem a voz que as suporta. A delicadeza vocal de Joan é quase insuportavelmente bela.
É, portanto, uma (ligeiramente) reinventada Joan As Police Woman a que encontramos em Damned Devotion. E assim, sem grandes alaridos mas de forma sempre segura, a ex-integrante dos The Dambuilders, dos Those Bastard Souls, dos Black Beetle e dos Mind Science of The Mind vai seguindo o seu particular caminho ao encontro dos que tanto a desejam ouvir. E assim, ouvindo-a em Damned Devotion, aplaudimos uma vez mais o seu regresso aos discos.
Parece que já aconteceu num passado distante, mas em 2004 os Franz Ferdinand eram, a par dos Strokes, White Stripes ou Arcade Fire, a sensação do movimento indie. O seu homónimo disco de estreia, “feito para as raparigas dançarem”, com as suas guitarras e teclados maiores do que a vida, fizeram da banda escocesa uma das preferidas das pistas de dança e salas por esse mundo fora.
Convenhamos, só uma alma empedernida conseguiria ficar impávida ao ouvir “Tell Her Tonight”, “Take Me Out”, “The Dark of the Matinée”, “This Fire”, “Darts of Pleasure” ou “Michael”. A banda realmente encapsulou o movimento indie rock num só disco, que aos dias de hoje terá que ser julgado como um clássico moderno do rock.
Não perdendo tempo, a banda liderada por Alex Kapranos, uma espécie de Parker Lewis do rock, lançou rapidamente You Could Have So Much Better que, mesmo não tendo o mesmo impacto de novidade, conseguiu reunir um bom leque de canções (“Do You Want To”, “This Boy”, “Walk Away”, “Eleanor Put Your Boots On” ou “Outsiders”, entre outros bons números indie).
A partir daqui começaram os grandes hiatos entre discos. Tonight, lançado no fim da década, ainda lhes mantém o estatuto de banda pertinente. Grandes músicas como “Ulysses”, “No You Girls” ou “Can’t Stop Feeling” aliadas a um som mais electrónico e experimental, mantiveram a banda a encabeçar os grandes festivais de música. No entanto, quatro anos mais tarde, em 2013, a banda viu a sua popularidade começar a decrescer. Right Thoughts, Right Words, Right Action já não é um disco essencial. Tem algumas boas canções (“Right Action”, “Evil Eye” ou “Bullet”) e vale, sobretudo, pelo seu lado pop e pouco pretensioso. Aliás, essa é uma das boas características da banda de Kapranos: não se levam demasiado a sério. Os seus discos e concertos são, sobretudo, para as pessoas passarem um bom bocado. E isso voltou a ver-se na fantástica colaboração com os Sparks que resultou na criação da super banda FFS e consequente disco homónimo (2015). Um bom conjunto de canções feitas por duas bandas bem distintas que casaram quase na perfeição, mostrou que os Franz Ferdinand continuavam bem a nível criativo, mesmo que começassem a descer na tabela de “cabeças de cartaz”.
Os primeiros sinais de crise começaram a surgir em 2016 com a saída de Nick McCarthy, membro fundador e parelha de Alex Kapranos. A sua saída, supostamente, deveu-se mais às contingências causadas pelas longas digressões e gravações de material novo do que a problemas entre os membros da banda. McCarthy queria estar mais próximo da sua família, acabando por formar um projecto com a sua mulher, Manuela. Segunda a banda, esta poderá não ser uma despedida definitiva, mas só o tempo o dirá.
Mesmo continuando a ser a força motriz e a cara dos Franz Ferdinand, Kapranos dependia muito do seu par McCarthy. A base rítmica da banda era muito marcada pelo multi-instrumentalista, daí que a sua saída não augurasse o melhor dos futuros para o grupo. Para suprimir a sua ausência, a banda contratou não apenas um, mas sim dois elementos, Dino Bardot (guitarra) e Julian Corrie (teclas/guitarra). Coincidência ou talvez não, Always Ascending, primeiro disco sem Nick McCarthy, soa desinspirado e pouco interessante.
O disco, composto por 10 canções, começa com a faixa homónima e primeiro single de apresentação de Always Ascending. Trata-se de uma música bem ao estilo de Franz Ferdinand, feita para as pistas de dança, mas deixando mais de lado as guitarras e apostando prioritariamente nos teclados e sintetizadores. Continuando a boa abertura do disco, seguimos para o ponto alto com “Lazy Boy”, faixa que mistura os teclados do início dos anos 70 dos Pink Floyd e as guitarras de The Wall com o funk/disco de Giorgio Moroder. Este som vai ao encontro do que Kapranos afirmou quando dizia, recentemente, que queria continuar a fazer música para dançar, mas através de uma roupagem mais crua.
No entanto, o pior surge a seguir, e vem exactamente na mesma linha que afectou os Arcade Fire e o seu Everything Now. O problema do último disco da banda canadiana não teve tanto a ver com a sua mudança de estilo para um som mais pop na linha dos Abba, mas sim na falta de qualidade das músicas que mais soavam a Arcade Fire. O mesmo problema é encontrado em Always Ascending. “Paper Cages”, “Finally” ou “Glimpse of Love” são sucedâneos de outros êxitos da banda de Glasgow e são facilmente esquecíveis. Até os momentos mais introspectivos, que passaram a constar em todos os discos de Franz Ferdinand desde a belíssima “Eleanor Put Your Boots On“, passaram a soar forçados (“The Academy Awards” ou “Slow Don’t Kill Me Now”).
O disco salva-se da nota negativa devido às suas duas músicas iniciais, a “Lois Lane”, “Huck and Jim”, o mais aproximado ao rap que a banda de Kapranos chegou, e “Feel The Love Go”, outro dos bons momentos para a pista de dança.
Alex Kapranos, uma vez apelidado de o tipo mais cool do rock, e os seus Franz Ferdinand necessitam de voltar rapidamente aos momentos criativos mais elevados, sob pena de verem o seu característico charme sucumbir à passagem das areias do tempo. E isso seria trágico para uma banda que tão bem personificou a “cena” indie dos anos 2000.
Fará, no mês de junho próximo, quarenta e seis anos de vida. Com a idade que tem, e já vai sendo alguma, uma ou outra ruga sonora não poderia deixar de ser audível, mas isso pouco importa, sobretudo por estarmos em presença de um disco histórico, pensado, na sua quase totalidade, pela cabeça de Brian Ferry, mas também com a presença de um particular músico que seguiu, mais tarde, um caminho bem diferente e bem distinto daquele que trilhou primeiro, sobretudo à medida que o seu interesse musical foi fletindo pare outros fantásticos lugares. Nesse avanço de tempo, muita coisa aconteceu na história do grupo, mantendo-se ainda capaz de nos proporcionar mais alguns belos trabalhos, embora nenhum deles com os predicados deste primeiro longa duração, uma autêntica pedrada no charco nas ondas experimentais e vanguardistas do art rock e do glam. Para muitos dos fãs da banda, este não é o melhor dos discos de estúdio dos Roxy Music. É sempre assim, quando se expressam opiniões sobre quem se gosta. Há quem prefira o segundo (For Your Pleasure, 1973), há quem se encante particularmente com o último (Avalon, 1982), muito por culpa dos enormes sucessos que foram “Avalon” e “More Than This”. Pelo meio, há ainda outros cinco discos que merecem respeito e consideração mais ou menos unânimes. Mas por hoje, só Roxy Music nos interessa.
O lado A (era assim que se dizia, quando saiu a 16 de junho de 1972) abre com “Re-make / Re-model”, tema em que os músicos, todos ainda muito incipientes na forma como se conjugam, parece que lutam para que o seu instrumento prevaleça sobre os restantes. Segue-se “Ladytron”, tema responsável pelo nome da conhecida banda de electropop sediada em Liverpool, surgida nos finais dos anos noventa. É algo hipnotizante o efeito sonoro inicial produzido por Brian Eno no seu VCS3. A canção resulta clássica e futurista ao mesmo tempo, sobretudo pela citação de Sergei Prokofiev através do oboé de Andy Mackay. “If There Is Something” chega logo de seguida, parecendo trazer, de início, um certo travo a country, até que a guitarra e o saxofone vão tomando conta do recado, não esquecendo, para que o efeito resulte na totalidade, a voz livre e melancólica de Bryan Ferry. Depois, uma lição de boa pop. “Virginia Plain” ainda hoje provoca arrepios a quem a escuta. Composição que avança e para na sua particular construção repleta de ruídos e brilhos muito característicos, “Virginia Plain” é um verdadeiro achado sonoro. Curiosamente, a canção não aparecia na edição inglesa, o que ainda hoje nos parece difícil de perceber a razão para uma falha tão gigantesca. O lado A termina com “2HB”, tema dedicado ao ator herói de Casablanca, o mais que famoso filme de Michael Curtiz. “2HB” (ou, se preferir, “to Humphrey Bogart”) vive muito da aproximação que faz a “As Time Goes By” através do saxofone de Andy Mackay.
Tempo para mudar de lado. Tempo para ouvir a guerreira “The Bob (Medley)”, título acrónimo para Battle of Britain, que introduz, a meio do refrão, ruídos de canhões e outras armas de fogo. É, na nossa opinião, uma batalha desinspirada, o momento menor do álbum. Em seguida, instala-se a estranheza inquietante de “Change Meeting”, inicialmente marcada pelo som de um piano bem comportado, mas depois acabando com estridências vanguardistas à moda de Brian Eno. Até que surge a belíssima balada (que logo deixa de ser balada para ser rock puro) “Would You Believe?”, tema de grande fôlego que poderia muito bem ter sido composta e cantada por David Bowie, por exemplo. Uma malha do tamanho do mundo! Segue-se “Sea Breezes”, o tema mais longo de todo o disco, que vive sobretudo da bateria que emerge a meio da canção, assim como a poderosa linha de baixo que também ganha destaque nessa mesma altura. É mais uma composição que vai ficando no ouvido à medida que vamos insistindo nela. “Bitters End” fecha o disco num meio tom de fim de festa bizarra, servindo com total propósito toda a extravagante excentricidade que é Roxy Music. Os arranjos vocais são totalmente british style, pelo que a canção encerra o álbum de estreia da banda de Ferry, Eno, Mackay, Phil Manzanera, Graham Simpson e Paul Thompson da melhor maneira possível.
Gostamos dos MGMT. Uma banda que sempre fez apenas e somente o que lhes apeteceu. Recapitulemos o seu esquizofrénico percurso. Começaram nos píncaros com Oracular Spectacular. Os seus três singles assassinos – “Kids”, “Time to Pretend” e “Electric Feel” – foram, muito justamente, aclamados pelo público e pela crítica. O indie no século XXI não seria o mesmo sem o seu jorro de cor e exuberância.
Seria fácil para os MGMT repetirem esta fórmula mágica inicial. Não foi isso que decidiram fazer. Num olímpico manguito aos fãs e aos críticos, deram-nos Congratulations, um disco psicadélico encantador mas bizarro, sem qualquer single óbvio. Como se essa ousadia não fosse suficiente, decidiram aprofundar a sua atitude anti-pop no homónimo álbum seguinte, ainda mais psicadélico e introspectivo. Que o grosso da sua base de fãs original, festivaleiros com um período de atenção de mosquito, tenha perdido a paciência para os novos MGMT, entende-se. Que os críticos sucumbissem à mesma preguiça estética, é que temos mais dificuldade em compreender. Tão lamentável é o elitismo contra a acessibilidade pop, como o plebeísmo contra a boa música exigente.
Talvez cansados das forquilhas e archotes sempre em riste, os MGMT regressam agora à imediatez pop dos primeiros tempos, com bonitas melodias cup-a-soup e bombas-refrão a condizer. A linguagem é contudo bem distinta da do indie caleidoscópio de “Time to Pretend”. As coordenadas de Little Dark Age são outras, ternamente nostálgicas da synthpop dos anos 80. Em fugazes pormenores, são óbvias as piscadelas marotas a clássicos kitsch de então: o Bowie de “China Girl”, o OMD de “Souvenir”, a Madonna de “La Isla Bonita”; meros pontos de partida para vôos melódicos originais.
Algumas canções comovem-nos pela sua melancolia peganhenta dos domingos à tarde da nossa infância. Outras intrigam-nos pela sua falsa superficialidade, com dissonâncias e acordes sombrios a estalarem o verniz pop. O tema-título é a canção gótica que, por alguma estranha razão, Robert Smith se esqueceu de escrever. Apenas “One Thing Left to Try” desilude, fazendo apenas lembrar uma má canção dos Duran Duran.
Little Dark Age é uma amarga reflexão sobre o vazio da modernidade, uma espécie de OK Computer dos pequeninos. A ideia central é tão simples como convincente: coisas parvas como a obsessão pelo fitness e a azáfama das redes sociais servem apenas para esconder a nossa secreta solidão. Mas há sempre um sentido de humor – retorcido, é certo – que esconjura o negrume. Até a era sombria do título é pequenina, quase fofinha, perdendo assim o seu poder de nos assombrar. É preciso uma boa dose de optimismo para rebolar tão fundo na escuridão.
O único senão do álbum é o lastro que ensombra o século: a obsessão da pop moderna pelo seu próprio passado. Little Dark Age é demasiado retro para fazer o indie avançar. A sua nostalgia é paralisante.
Apesar de tudo, os MGMT oferecem-nos um belíssimo disco, como, aliás, sempre o fizeram. Ainda não foi desta que repetiram a relevância indie da sua estreia. Mas uma dezena de canções pop quase perfeitas já ninguém nos pode tirar. O suficiente para nos alumiar o caminho nesta nossa pequenina era sombria.
Mais de três décadas e meia depois de ter sido lançado nos mercados discográficos, Night And Day ainda mantém acesa a luminosa chama que fez dele um disco incontornável na extensa discografia do músico nascido no condado de Staffordshire, mais precisamente em Burton Upon Trent, cidade inglesa bastante famosa pelas importantes fábricas de cerveja e pelo seu 76 Club, que nas décadas de 70 e 80 foi local obrigatório de passagem de nomes como AC/DC, Dire Straits, Judas Priest, Motörhead, Ultravox, Suzy Quatro e onde os Sex Pistols gravaram o seu Anarchy in The U.K. Live at The 76 Club. Night And Day é o quinto disco de Joe Jackson, mas a distância sonora que o separa dos seus primeiros registos é tão grande como a extensão da U.S. Route 66. Depois de três discos iniciais onde a New Wave, o Ska e o Punk-Rock se mostravam bem enraizados (Look Sharp!, I’m The Man e Beat Crazy), e ainda depois de um quarto disco (Jumpin’ Jive) totalmente marcado pelo Jazz, Jump Blues e pelo Swing, havia chegado a hora de mudar. De estilo, mas também de geografia. Irrequieto como poucos e profundo conhecedor de música (estudou violino e piano desde muito cedo, chegando a frequentar a Royal Academy of Music de Londres), partiu para o continente americano disposto a encontrar novos caminhos e orientações para a sua carreira artística. O primeiro passo nesse sentido foi dado com o pé direito, e pela importância desse magnífico registo, resolvemos hoje recordá-lo aqui.
Night And Day tem um conceito interessante: mostrar, nos dois lados do disco, a transição da noite para o dia. Um primeiro lado mais mexido, ritmado, mais nervoso, e uma segunda face mais tranquila e introspetiva, como se o dia começasse a raiar serenamente, depois da agitação do período noturno. De forma radical, todos os instrumentos de corda foram banidos das gravações, exceção feita ao baixo. As guitarras dos primeiros anos, nem vê-las! No lugar delas, piano e outros teclados, percussão e inspiração afinadíssima.
Do ponto de vista sonoro, Night And Day é, portanto, um misto de ritmo (pop, rock, latino, urbano), mas também apresenta um lado mais baladeiro, sem nunca perder a noção do todo que une as nove canções do álbum. Elas estão, aliás, sempre interligadas, não havendo um segundo de silêncio na transição dos temas. Se estivermos atentos aos versos cantados, também nesse capítulo seremos capazes de encontrar uma certa linha narrativa. Na primeira faixa (“Another World”), um homem chega a um mundo totalmente novo (Nova Iorque, presumivelmente), tenta encontrar “Chinatown”, e aos poucos vai percebendo que as pessoas estão mais interessadas no universo da televisões (“T.V. Age”) do que no convívio entre pessoas. Mesmo assim, quem nos guia pela noite fora até ao final da aventura, embrenha-se por locais onde reina a delinquência, os furtos (“Target”), acabando por, mesmo assim, celebrar toda a vida que existe na noite, sempre de uma forma otimista, até porque a rádio e a televisão fazem de nós prisioneiros, cativos numa idade de não temos : “We / Are young but getting old before our time / We’ll leave the T.V. and the radio behind / Don’t you wonder what we’ll find / Steppin’ out tonight”. E assim termina a primeira metade do álbum, com a soberba “Steppin’ Out”, o maior hit de sempre de Joe Jackson, canção tão injustamente esquecida com o passar dos tempos.
Depois, virando a face da bolacha sonora, vem a introspeção, o recolhimento, a hora de questionar a vida, os relacionamentos, o momento de colocar muita coisa em causa, sobretudo quando temos consciência de que vivemos num mundo que nos surpreende por estar sempre em mudança, alterando até os paradigmas do homem e daquilo que dele se espera, tanto do ponto de vista cívico como até da sua masculinidade. Nesta face B, o lado diurno do disco, uma canção brilha acima de todas as outras. Trata-se de “Slow Song”, obrigatoriamente favorita de todos os que amam Joe Jackson. Vindo de quem vem, que no início, como já aqui referimos, vivia de composições cheias de energia e ritmo (era o Punk a tornar-se saliente), não deixa de ser pertinente a crítica que faz a quem nas discotecas se recusa a passar uma slow song. É o reflexo do cansaço de quem esteve acordado a noite inteira e de quem, ao nascer dos primeiros raios de sol, só quer “a strong and silent sound / To pick me up and undress me / Lay me down and caress me”.
Um último instante para fazer referência à irónica capa de Night And Day. Simples e eficaz, diz bastante do que temos em mãos. Depois de nos ler, basta ouvir o disco para melhor entender o que aqui sugerimos.
Anna Calvi (Londres, 1982) é uma cantora e compositora ítalo-britânica. Ganhou fama através da participação na pesquisa "Sound of 2011...