No arranque do milénio, Marisa Monte traz-nos um colosso cheio de hits e de clássicos, cruzando a tradição com uma impecável modernidade.
Marisa Monte foi um hit deste a primeira hora, parecendo saber tocar naquele esquivo ponto que concentra popularidade e qualidade inquestionável. Na entrada para o novo milénio, a cantora já trazia no alforge três discos muito bem sucedidos e era um nome estabelecido da música brasileira dos tempos modernos. Isto fazendo, saliente-se, a ponte entre a tradição e uma linguagem contemporânea muito própria.
Depois de um arranque em grande velocidade, a verdade é que depois de Verde, anil, amarelo, cor-de-rosa e carvão, de 1994, foi preciso esperar seis longos anos para conhecer o novo capítulo da carioca. Este chegou com Memórias, crónicas e declarações de amor, um disco que cumpriu todas as promessas do passado e ainda abriu portas para o futuro.
O tema central do disco é o amor (não é sempre?) nas suas variadas formas. É um trabalho muito feminino, talvez o mais profundamente feminino da sua discografia. E fez-se monumento, não por isso, mas porque assenta em alicerces – as canções – que se tornaram clássicos incontornáveis de qualquer best-of de Marisa Monte.
Senão vejamos: o arranque é imediatamente reconhecível, com “Amor I Love You”, contando com a participação especial do sempre especial Arnaldo Antunes, lendo um trecho de O Primo Basílio, do nosso Eça de Queirós, Depois o pop/rock swingante de “Não vai embora”, completamente contemporâneo; para depois nos dar duas pedradas na tola, que nos deixam logo rendidos sem querer saber de mais nada. Falamos da lindíssima e tristíssima balada “O que me importa” e de “Não é fácil”, talvez uma das mais belas e singulares cantigas de “dor de corno”.
“Perdão você” é toda ela leveza, flores, cores, com o violão a conduzir uma música onde a voz de Marisa tudo domina, pairando sobre uma cama de cordas e subtis coros. Segue-se “Tema de amor”, novamente clássica e totalmente contemporânea, cortesia da percussão forte e dos apontamentos de uma irrequieta guitarra eléctrica. Com “Abolô”, viajamos décadas para o passado, para uma sala abafada, escura, e com uma singela e solitária pianista sentada, a desfiar as suas mágoas de amor.
Mas Marisa Monte também é samba, sobretudo o da velha escola, e este não poderia faltar. Aparece, em todo seu simples esplendor, com “Para ver as meninas”, de Paulinho da Viola, com direito a cavaquinho e todo o arsenal de criativa percussão do samba. Abaixo de tudo, elevando o todo à aura de sonho, está o violoncelo de Jaques Morelembaum, cruzando a rua e o salão. E este é um bom tema para falar de um dos truques de todo o disco, a sua produção, da autoria de Monte e do seu habitual parceiro Arto Lindsay. Em “Para ver as meninas” ele vai torturando gentilmente uma guitarra eléctrica e outra maquinaria, que entra na mistura, discretamente, trazendo sem que nos apercebamos um novo nível de modernidade e de sofisticação. Aquilo que ficaria apenas uma melodia tradicional muito bonita transforma-se, assim, numa peça contemporânea artística.
O mesmo truque de “sujar” a mistura é utilizado numa música totalmente diferente, a seguinte “Cinco minutos”, da autoria de Jorge Ben. A percussão forte e esse bicho “electrónico” de fundo é o que eleva o tema a um outro nível. “Gentileza” volta a tentar a leveza de “Perdão Você”, mas numa música mais simples e, como tal, também menos bem conseguida (na nossa modesta opinião, a canção menos forte de todo o disco).
“Água também é mar” junta três artistas que, muito em breve, dariam muito que falar: Marisa, Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes. Uma canção delicada, quase infantil, num registo que viria a ser trabalhado e dar muitos frutos no primeiro e muito bem sucedido disco dos Tribalistas, dois anos depois.
Segue-se “Gotas de luar”, um sambinha simples, quase cansado, como a melodia que fica na rua, muito tarde, quando quase toda a gente já se foi deitar. Aqui não há truques de produção nem jogadas de grande monta. Apenas uma cantiga singela, bonita, servida por um poema com as mesmas abençoadas caraterísticas.
O fecho de Memórias, crónicas e declarações de amor ficou guardado para a homenagem ao grande Caetano Veloso, com a sua “Sou seu sabiá”. É um fecho com ás de ouros, a reclamar a rendição total e absoluta, num tema muito bonito e com um arranjo clássico mas sofisticado, a lembrar os grandes hinos de amor dos dourados anos 50.
41 minutos e 29 segundos depois, o que fica é talvez o trabalho mais consistentemente elevado da excelente carreira de Marisa Monte. Noutras alturas terá sido mais espontânea, mais disruptiva, mais original ou mais “pura”. Aqui, em Memórias, crónicas e declarações de amor, temos de tudo um pouco: tradição e modernidade, passado e futuro, suavidade e força, grandes amores e maiores desgostos, ares amplos e salas frias. E um conjunto de canções que, com uma produção e arranjos extraordinariamente felizes, asseguram que as canções não cansam, não envelhecem, têm sempre mais algo para dar e que ficou escondido em audições anteriores.
E não deixa de ser de saudar que um disco que vendeu milhões e deu temas para conhecidíssimas novelas da Globo consiga ser, ao mesmo tempo, artisticamente tão forte.
É disto que se faz um clássico, na carreira de uma autora que continua sempre a dar-nos grande música.
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