Ainda que o primeiro texto dessa série possa ter passado a impressão de que os acontecimentos seriam abordados de forma cronológica, o autor preferiu tratá-los por afinidade temática. Se no primeiro texto foi tratado do contexto do rock brasileiro no início dos anos 70 e de alguns lançamentos ocorridos em 1974, esta parte do texto abordará com maior ênfase os festivais e também alguns lançamentos fonográficos de 1975. A terceira parte cuidará de falar do crescimento do rock na mídia (televisão, rádio e imprensa), de bandas que eram populares na época mas que não chegaram a gravar nenhum material e também dos lançamentos fonográficos de 1976. Portanto, observa-se ao leitor que as partes I, II e III desse texto não correspondem automaticamente aos anos de 1974, 1975 e 1976 respectivamente, como se poderia sugerir.
O biênio 1975-1976 seria um marco em grandes eventos e festivais (dadas as proporções do público existente) para o rock brasileiro.
Logo em janeiro de 1975, duas grandes ocasiões agitaram o rock brasileiro – o festival Hollywood Rock, ocorrido no Rio de Janeiro, e o festival de Águas Claras, no interior do estado de São Paulo.
O empresário Nelson Motta (que já estava envolvido com o rock dos Brazões e dos Novos Baianos alguns anos antes, e apresentava o programa Sábado Som, na TV Globo) surge com o projeto “Hollywood Rock”, realizado no campo do Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro. Foram 4 fins de semana de som, cada um deles com atrações diferentes. O primeiro, em 11 de janeiro, teve como atração principal Rita Lee & Tutti Frutti. No dia 18 (coincidindo com o segundo dia do Festival de Águas Claras em Iacanga), estavam previstas apresentações do Veludo e dos Mutantes. O público, de aproximadamente 18.000 pessoas, lotava o espaço do campo. Após a apresentação do Veludo, os Mutantes sobem ao palco e logo são recepcionados por uma tempestade de verão, que destruiu o palco e acabou com a apresentação. Isso prejudicou muito a banda, que teve equipamentos danificados e os tirou da apresentação no Festival de Águas Claras (eles iriam direto do Rio para Iacanga, após o show, para se apresentarem no Festival de Águas Claras). No dia 25, as atrações eram O Peso, Vímana e O Terço (que tinha sido um dos headliners em Iacanga no fim de semana anterior). O Vímana foi prejudicado por uma falha no som durante parte do show e chegou a ser vaiado; já os dois outros shows levantaram a moçada. O derradeiro concerto da série recebeu dois artistas já históricos de nosso rock – Celly Campelo e Erasmo Carlos, além do emergente Raul Seixas. Erasmo Carlos vinha acompanhado de um supergrupo, batizado de Cia. Paulista de Rock, contando com os ex-Mutantes Liminha e Dinho Leme. Existe um “falso” registro em áudio de parte do festival, com as músicas de estúdio das bandas que se apresentaram, acrescidas de barulhos de platéia, e um registro raro em vídeo (chamado “Ritmo Alucinante”, cujo registro em vídeo pode ser visto aqui), infelizmente com baixa qualidade de som e imagem, de alguns trechos dessas apresentações, que pelo menos vale pra se ter uma idéia d’O Peso e do Vímana no palco. Houve tentativas da parte de Motta para levar o evento a outras capitais mas não deu certo. A Souza Cruz, patrocinadora do evento, inclusive, já tinha se comprometido com uma versão paulista do festival, que ocorreria no autódromo de Interlagos. Contudo, uma batida policial no hotel em que produção do evento estava hospedada encontrou drogas no local e a Souza Cruz retirou-se da jogada, inviabilizando o evento. Recentemente, foi descoberto no arquivo público do Estado do Rio de Janeiro o relatório de um agente do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) que esteve infiltrado no campo do Botafogo ao longo dos 4 fins de semana, tomando nota da loucura local. Uma de suas anotações destaca: “Inúmeros jovens de ambos os sexos apresentavam sinais de se encontrarem sob dependência psíquica; uns dançavam e contorciam-se no chão: olhos esgazeados, avermelhados, balbuciando frases desconexas.”
O Festival de Águas Claras, realizado entre 18 e 20 de janeiro em Iacanga, foi o maior festival ao ar livre ocorrido no Brasil na década de 70. Como era de se esperar, foi uma festa muito louca, com muita lama e anunciada pela mídia como nosso equivalente à Woodstock. Foram 3 dias (sexta, sábado e domingo) com instalações modestas para o público (eram 50 banheiros, 1 barraca de assistência médica e 2 ambulâncias para cerca de 15.000 pessoas), mas com a garra de organizadores, técnicos de som, luz e músicos para entregar ao público o que de melhor fosse possível, especialmente pelo fato do festival não ter tido patrocínios oficiais. O festival alternou bandas do primeiro escalão do nosso rock e outras bem desconhecidas até mesmo para o público do festival. Segundo relatos da mídia da época, subiram ao palco: Dan Rock-a-Billy (tocando covers de Elvis Presley e Bill Haley), Pedra, Cogumelos, Sacramento, Peyotes, Corpus, Tony Osannah, Movimento Parado e Rock da Mortalha, já varando a aurora do sábado. No sábado, Libertas, Eclipse, Dez Mandamentos, Orquestra Azul, A Chave, Mike (um guitarrista americano recém chegado ao Brasil), Jazzco, Terreno Baldio e Apokalypsis. No domingo, Flying Banana, Grupo Acaru, Tibet, Cézar das Mercês (que já tinha tocado baixo com O Terço e era parceiro de composição da banda carioca); Moto Perpétuo, Som Nosso de Cada Dia e O Terço foram a trinca de ferro que fechou o festival na madrugada de domingo.
Também participaram do cast do festival Ursa Maior, Burmah (grupo argentino), Mitra, Jorge Mautner, Walter Franco, Odair Cabeça de Poeta e Grupo Capote. Contudo, poucos relatos dão maiores detalhes sobre os shows. O Moto Perpétuo, por exemplo, foi hostilizado por parte do público rockeiro mais radical durante as passagens mais tranqüilas de suas músicas; o Apokalypsis gerou grande catarse com a canção-manifesto “Liberdade”, executada ao raiar do sol; os argentinos do Burmah eram muito bem recebidos, bem como o blues-rock do hermano guitarrista/vocalista Tony Osannah. A Orquestra Azul também causou bastante impacto, por ter integrantes adolescentes (entre 15 e 19 anos) executando um jazz-rock de alto nível. Terço e Som Nosso de Cada Dia fizeram grandes espetáculos e deixaram todos despedidos com largos sorrisos nos lábios.
Entre 2008 e 2010 noticiou-se a elaboração de um documentário a respeito do festival, que ainda não viu a luz do dia e também foram disponibilizadas no Youtube imagens em Super 8 do festival, do acervo do fotógrafo e cinegrafista Mario Luiz Thompson (veja alguns desses registros aqui).
No Paraná, aconteceu no primeiro trimestre, o Festival de Rock da Praia do Leste. 5 mil estiveram presentes à beira-mar para curtir som de grupos locais e do sul do país. As atrações principais eram O Terço e Rita Lee & Tutti-Frutti. Assim como outros eventos que se tentaram realizar no período de verão, uma tempestade tropical prejudicou todo o equipamento e a estrutura do palco. Mesmo assim, a moçada pode curtir a reunião, bem como o som dos paranaenses do Jantar Rock, os gaúchos do Byzarro e do Bixo da Seda, um show solo de Cézar das Mercês (tendo em sua banda de apoio Celso Carvalho, futuro Celso Blues Boy), as bandas Pedal, Khaos e Movimento Parado. Em Porto Alegre, mas na primavera, ocorreu o Festival Primavera em dois dias no auditório Araujo Viana, contando com Flying Banana, Luzia Maria, Belchior, Utopia, Jorge Mautner e Gilberto Gil.
A Banana Progressiva foi outra maravilhosa reunião da nata rock brasileira e da MPB relacionada ao rock. Projetada para ser um evento multicultural (com música, exposições de artes plásticas, fotografia e cinema) e para acontecer como uma temporada, aconteceu de fato no Teatro da Fundação Getulio Vargas em São Paulo, em maio, organizado pela Trinka Produções, produtora que já organizava diversos agitos na capital paulista. Foram 4 noites de evento (29, 30 e 31/05 e 01/06/1975), começando numa quinta-feira. Na abertura do festival se apresentaram Veludo, Quarto Crescente (há outra banda com este nome nos anos 80, da qual fez parte o vocalista Percy Weiss, sem relação com esta), Bandolim e Som Nosso de Cada Dia. O segundo dia do evento foi a vez do grupo Montanhas, Edson Machado & A Rapaziada, Vimana e Burmah. Na noite seguinte, subiram ao palco Biscoito Celeste, A Bolha, Manito (já saído do Som Nosso de Cada Dia, se apresentando como artista solo) e Erasmo Carlo e Cia. Paulistana de Rock. E por fim, o domingo teve uma seleção maravilhosa de shows com Hermeto Pascoal, Barca do Sol, Jazzco e Terreno Baldio. A Banana Progressiva foi noticiada na época e musicalmente malhada pela crítica jornalística, que acusava os grupos de não terem originalidade e usarem fórmulas mal-copiadas de grandes grupos ingleses. O Festival foi bem sucedido em termos de público, porém a idéia de seguir como uma temporada de eventos não se firmou da maneira como a Trinka gostaria. Outras pequenas temporadas ocorreram no Opus 2004 e no Teatro Bandeirantes, todos em São Paulo, no segundo semestre de 75, mas ficou por ali. Recentemente, os registros em película da Banana Progressiva vieram a público, bem como o material gráfico foi digitalizado por um louvável esforço do selo PsicoBR; contudo, os áudios dos shows se perderam e na época já não tinham sido captados na íntegra (você pode conferir o histórico registro do festival aqui). A apresentação do Veludo na Banana Progressiva transformou-se em um disco lançado nos anos 2000 (não contém a íntegra da apresentação, mas boa parte dela), a partir do som capturado da plateia, com qualidade de som razoável e grande performance dos músicos, mostrando o calibre e a garra da banda.
Também por iniciativa da Trinka Produções em 75, surgiu o projeto Rock da Garoa, que tinha a intenção de fazer um intercâmbio de bandas de São Paulo em outros estados brasileiros. Contudo, dadas as sabidas dificuldades de nosso show business, o projeto só pintou no Rio e na própria capital paulista, levando para os palcos grupos como o Apokalypsis (incluindo a parceria com o violonista e compositor Edu Viola), Tony Osannah e banda, Sindicato (banda formada pelo ator/cantor Ricardo Petraglia) e Platô, um grupo de jazz-rock vanguardista com Sizão Machado, Duda Neves, Paulo Machado, Datcha e José Neto, que passou a ser bastante cultuado na época e teve alguns de seus integrantes na banda de Hermeto Paschoal. De uma das apresentações do Rock da Garoa no Teatro Bandeirantes também foi retirado um registro do Apokalypsis ao vivo, de grande valor histórico e musical para o rock brasileiro do período.
Nélson Motta novamente apareceu no ramo da produção de eventos, dessa vez buscando aliar o rock com um festival de surfe que ocorreria na cidade de Saquarema, no Rio de Janeiro. O Festival Som, Sol e Surf, ocorrido em maio de 1976, é repetidamente descrito como um grande fiasco, tanto artístico quanto de público. Nelson queria repetir a experiência de fraternidade ao ar livre de Woodstock e trouxe para o palco o que ele considerava o que de melhor havia no rock brasileiro. Segundo Nelson Motta, em depoimento, a idéia surgiu a partir do músico Flávio Espírito Santo, que tinha uma banda e residia no local. Ele interpelou Nelson dizendo que tinha toda a estrutura, alvarás, conhecia o prefeito, etc. A condição para tal era que sua banda pudesse também tocar no festival. Nelson Motta entrou achando que podia ser uma boa e saiu falido.
Logo no primeiro dia, uma chuva forte abateu o local do evento, prejudicando a estrutura organizada e o cronograma. A organização ficou no único hotel da cidade, decidindo o que fazer e confraternizando como podia com os artistas. Nesse metiê estavam, inclusive, artistas que nem iriam se apresentar, como Ney Matogrosso e Patrick Moraz (ex-tecladista do Yes). Fora isso, o público pagante foi pífio (ainda que tenham aparecido mais de 40.000 pessoas no local) e o organizador ficou praticamente falido. A cidade de 10.000 pessoas se viu virada do avesso, com falta de produtos de primeira necessidade e saneamento precário. Tocaram lá as bandas Made in Brazil, Vímana, Rita Lee & Tutti-Frutti (lançando o disco Entradas e Bandeiras) Raul Seixas, O Terço, Bixo da Seda (cuja atuação foi extremamente elogiada por público e crítica, no show de lançamento de seu disco Estação Elétrica) e Ângela Rô Rô (na época uma estreante cantora) e grupo Flamboyant, entre outros. Depoimentos de pessoas que estiveram presentes relatam a precariedade do local e o som que ficou devendo, mas o quanto a festa foi quente. O Jornal O Globo noticiou, em 2014, a elaboração de um documentário sobre o festival e um teaser chegou a ser divulgado. O festival foi filmado em película, com boa qualidade (veja trechos do show de Raul Seixas no festival aqui). Quando lançado, o documentário preencherá uma grande lacuna audiovisual no rock brasileiro.
Aconteceram ainda vários eventos ao ar livre no Parque do Ibirapuera e no Parque da Aclimação, em São Paulo, e no MAM do Rio, além das freqüentes agitações que rolavam na Tenda do Calvário e no TUCA em São Paulo. No Rio, os palcos principais do rock eram o MAM (Museu de Arte Moderna) e os Teatros João Caetano e Tereza Rachel, com produção de Carlos Alberto Sion e Samuca Wainer. No fim de 1975, cabe destacar as apoteóticas apresentações do mago dos teclados, Rick Wakeman. Foram 5 apresentações no país em novembro – duas em São Paulo, no estádio do Canindé (dias 13 e 14), uma em Porto Alegre, no Gigantinho (dia 18) e duas no Rio de Janeiro, no Maracanã (dias 20 e 21). Todas lotadas e exaltando o estrelato do tecladista que, naquele momento, vivia o ápice de sua carreira.
Em termos de discos lançados, os grandes destaques ficam com o lançamento de Criaturas da Noite, do Terço, um marco do rock brasileiro, e a guinada progressiva do grupo paulista Casa das Máquinas. Com a entrada do tecladista Mário Testoni, a banda envereda fortemente para um som mais elaborado e lançando o disco Lar de Maravilhas, um dos trabalhos mais representativos do rock progressivo do Brasil na época. Como já dito anteriormente, a banda já era bem profissionalizada, vinda do bem-sucedido núcleo d’Os Incríveis no fim dos anos 60, com bons equipamentos e uma certa experiência na lida fonográfica. O disco se saiu muito bem em vendas por conta da faixa de abertura “Vou morar no ar”, uma canção um pouco mais acessível comercialmente falando, que acabou entrando até como trilha sonora de novela da Rede Globo. O tecladista Mário Testoni também foi responsável posteriormente pela guinada ao progressivo da banda Pholhas.
O Terço atingia grande magnitude com as vendas de Criaturas da Noite e se lançara na tentativa de alcançar mercados internacionais. Gravaram uma versão em inglês deste disco que foi lançada na Itália, com algumas mudanças na mixagem da parte instrumental que não ficaram boas. Acabaram não tendo o resultado obtido, porém conseguiram algumas incursões em países vizinhos. Aqui, seus shows eram muito concorridos e a banda era um dos maiores nomes do rock neste período.
Outro marco no rock brasileiro de 1975 foi o primeiro (e único) disco da banda O Peso. Formada a partir da dupla Luis Carlos Porto e Antônio Fernando, vindos de Fortaleza para o Rio concorrendo com a música “O Pente” no FIC de 72, a banda registrou em 75 o disco Em busca do Tempo Perdido, com um rock básico, rasgado e pesado, com influências de blues-rock. A formação que gravou o disco e fez vários shows no período era Luís Carlos Porto (vocal), Carlinhos Scart (baixo), Gabriel O’Meara (guitarra), Constant Papineu (teclado) e Carlos Graça (bateria). O grupo, desiludido pela falta de sucesso e queimado com os empresários pela arruaça que provocava por onde passava, encerrou as atividades após dois anos na estrada. Os músicos do Peso se integrariam novamente nos idos de 76-77 com a banda Flamboyant, que contava com Gabriel, Papineu e Carlinhos, além de Zé da Gaita (que tinha participado do disco do Peso, tocando na faixa “Blues”) e Celso Blues Boy na guitarra. Chegaram a acompanhar Raul Seixas em alguns shows, mas não gravaram nada.
Rita Lee & Tutti-Frutti foram a sensação daquele ano, com seu lançamento mais bem sucedido até então – Fruto Proibido e Raul Seixas continuava numa ascendente com Novo Aeon. No underground pernambucano, a história foi escrita pelo coletivo capitaneado por Zé Ramalho e Lula Côrtes, que lançaram o mítico álbum Paêbirú. Totalmente radical, este foi um trabalho que levou à estratosfera a mistura de música regional nordestina com o espírito psicodélico de experimentação e muita loucura. Gravado em fins de 1974, o disco se tornou uma raridade muito rapidamente, por dois motivos – uma enchente abateu o depósito da gravadora onde estavam os discos prensados e grande parte do material se perdeu nessa ocasião; por conta do ocorrido, somado ao alto custo da prensagem (um encarte bastante caprichado acompanhava a edição original) e o baixo potencial de vendas, inviabilizaram novas produções pelo selo Rozenblitz. O que resta hoje é um legado maravilhoso desta obra, considerada como um dos discos mais valiosos (pelo valor musical e pela raridade) gravados no Brasil.
Adentrando nos territórios da MPB que transava o rock e vice-versa, há ainda que se destacar os lançamentos de Luiza Maria (Eu queria ser um anjo), com a participação dos músicos do Vímana, a estréia auto-intitulada do Azymuth, o primeiro disco solo de Ney Matogrosso, Fagner com Ave Noturna (também contando com músicos do Vímana), Milton Nascimento com Minas e Walter Franco com Revolver, entre outros.
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