quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Review: Emicida – AmarElo (2019)



AmarElo não é apenas mais um disco de rap dessa safra tão prolífica no cenário atual da música brasileira, mas sim, um disco de um artista que atingiu o auge de sua maturidade musical e pessoal, ditando junto com outros nomes importantes os rumos da música contemporânea brasileira. O terceiro disco oficial de estúdio de Emicida (dado que seus primeiros lançamentos são mixtapes) apresenta um artista completo, em seu ápice criativo e com uma liberdade musical que poucos músicos podem experimentar e apresentar em seus lançamentos. AmarElo está acima de gostar ou não do gênero que rendeu fama ao rapper paulista, destilando amor e brindando a vida em cada frase, em cada rima, em cada melodia, em cada batida.

Mais maduro e perspicaz, Emicida tece aqui críticas mais sutis, inteligentes e lúcidas, mas não menos ásperas às mazelas sociais e, especialmente, às condições e dificuldades incontestáveis de vida das pessoas negras. Mas ainda assim, o tom amargurado e ameaçador é substituído por palavras e sentimentos positivos de coragem, esperança, respeito, amizade e amor, todos representados pela cor amarela, a cor do otimismo, da alegria e do combate à depressão e ao suicídio. A música de Emicida vinha há algum tempo dando indicativos de que chegaria exatamente onde chegou. Ter alcançado esse nível não é surpresa nenhuma para quem acompanha sua carreira desde o início, mas ainda assim, sua música consegue surpreender.

“Principia” é uma prece, como que um agradecimento a tudo que aconteceu na carreira do artista e a todos que fizeram-no chegar até aqui. Uma batida simples, carregada de uma musicalidade rica, onde a história inteira da música negra parece tentar se fazer caber suavemente em pouco menos de seis minutos. Alternando entre frases cortantes e suave poesia, a canção vai ganhando corpo até deixar o ouvinte sem fôlego em meio a profusão exuberante e brutal das rimas, culminando em uma oração tão forte e intensa quanto, proferida com extremo ardor pelo Pastor Henrique Vieira. A faixa ainda conta com as belíssimas vozes de Fabiana Cozza, Indy Naíse, Marissol Mwaba, Nina Oliveira e a influência das congadas e sambas de roda nas vozes e coros das Pastoras do Rosário. O título “Principia” vem do livro de Isaac Newton, Principia Mathematica, o qual o músico descreveu como “as interpretei (as leis de Newton) como metáforas sobre os corpos e culturas humanas entrando em contato ao longo da história movidos pela fé, com um recorte bem preciso a respeito da melhor parte disso”.

“A Ordem Natural das Coisas” é um verdadeiro deleite, com uma textura quase transcendental, leve e acolhedora como um abraço quente no inverno. A interpretação do rapper, cantando lindamente como poucas vezes antes, somado a voz suave e sutil da MC Tha, tornam essa uma das mais belas canções da carreira do Emicida. Aqui ele flerta com a MPB e com gêneros mais pop, como os praticados por Projota, por exemplo. A letra emociona facilmente e remete à “Mãe” do disco anterior. Diferente do que o Criolo fez em “Não Existe Amor em SP”, Emicida joga nesta canção um olhar afetuoso sobre a rotina de pessoas comuns que acordam cedo para tocar suas vidas nas grandes cidades.

A levada suingada de guitarra (que valida a letra de “Bluesman”, de Baco do Exú do Blues) anuncia a canção mais deliciosa e despretensiosa do disco. “Pequenas Alegrias da Vida Adulta” é uma agradável poesia sobre a maturidade que o próprio título propõe e desperta a empatia ao falar com absoluta sensibilidade de situações pequenas do dia a dia que todos passamos, ou deveríamos ter o direito de passar, e que o músico só viria a dar atenção após sua paternidade. A terceira faixa do disco conta com a participação de Marcos Valle e termina com um áudio de uma história cômica contada pelo humorista Thiago Ventura.

Não é de hoje que o rap e a música de Emicida flertam com o samba, mas em “Quem Tem um Amigo Tem Tudo”, com a participação mais que especial de Zeca Pagodinho, rap e samba tornam-se uma coisa só na mistura da batida com a cuíca, os metais, o cavaquinho e as palmas em um verdadeiro hino à amizade. A música também conta com as participações de Tokyo Ska Paradise Orchestra e Os Prettos.

O riff  e a letra de “Paisagem” clamam por uma calma semelhante àquela que Lenine pediu outrora em “Paciência”, bradando contra um mundo onde as redes sociais vendem uma falsa alegria que poucos podem alcançar e falando sobre o quanto algumas tecnologias e o uso que fazemos delas nos tiram a atenção da paisagem e do que acontece fora de uma tela.

“Cananéia, Iguape e Ilha Comprida” tem um dos momentos mais encantadores do disco em um diálogo de Emicida com sua filha recém nascida. Uma canção que passeia deliciosamente pela soul music, com uma letra carregada da afetividade e carinho que transborda por quase todas as faixas iniciais do álbum. “9nha”, com a participação já recorrente de Drik Barbosa, engana com suas melodias suaves, com o samba descontraído do refrão e com a letra remetendo à uma paixão adolescente, quando na verdade fala de de maneira análoga de um adolescente e sua relação com uma arma de fogo e a romantização/sexualização da violência. “Ismália” é outro dos grandes momentos do disco, com a participação de Larissa Luz nas vozes e da icônica atriz Fernanda Montenegro narrando um trecho de Ismália, poema de Alphonsus de Guimaraens. A letra traça um paralelo do poema com a vida dos negros ainda tão limitada e muitas vezes tirada de forma absolutamente covarde.

Guardadas para o final do álbum, ficaram ainda reservadas duas das músicas mais marcantes do disco, lançadas anteriormente como single. “Eminência Negra” é um rap bastante tradicional, com uma batida pesada e uma aura densa. A expressão “eminência parda” tem origem na França. O frade François Leclerc du Tremblay, o braço direito do cardeal Richelieu Fraçois - primeiro-ministro de Luís XIII de 1628 a 1642 e arquiteto do absolutismo francês, – era famoso por seus trajes beges (pardos). Apesar de não ser cardeal, era chamado de Vossa Eminência devido ao grande poder e influência que exercia no governo francês. Na política, eminência parda se refere àquele político que exerce o poder de fato em determinado país, mas não de direito, ou seja, quem “dá as cartas nos bastidores”. Emicida exalta nesta letra personalidades negras, quase sempre excluídas dos espaços de poder da sociedade, dando a expressão “eminência parda” um novo significado, manifestando a ascensão dos pardos e negros. A faixa conta com as participações de Dona Onete, Jé Santiago & Papillon.

A faixa que leva o título do disco foi criada a partir de um trecho de “Sujeito de Sorte”, de Belchior, com as participações de Majur e Pabllo Vittar, que reforçam o tom social e da diversidade sexual da letra. Segundo Emicida: "No primeiro passo desse processo [o primeiro single, “Eminência Parda”], a nossa intenção era que as pessoas se sentissem grandes ao olharem no espelho. Agora, a ideia é que elas observem ao redor e se enxerguem maiores do que os seus problemas, independente de quais sejam”. Pabllo Vittar reforça que “a música é cheia de mensagens importantes, atuais e que retratam a diversidade, a luta e a força que vivemos todos os dias. O valor social que 'AmarElo' carrega é enorme e vai promover reflexões que precisam, cada vez mais, ser levantadas”. Trata-se de uma música forte, impactante, mesclando batidas clássicas do rap de Emicida com sons mais contemporâneos, dando um desfecho perfeito ao álbum.

O disco fecha com “Libre”, com a participação das gêmeas do Ibeyi, em um rap furioso que flerta com o funk e a música latina e termina como um aviso do que está por vir pela frente, lembrando que o músico, apesar de sua evolução musical e do sucesso alcançado, nunca esqueceu de onde veio e nem se perdeu do caminho para onde está indo.




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