quarta-feira, 31 de julho de 2024

George Harrison – Brainwashed (2002)


 

Lançado postumamente, Brainwashed é prova de vida do incrível talento de George Harrison e é, acima de tudo, uma viagem pelo que sempre o definiu – humor, humanismo e, claro, espiritualidade.

Ser George Harrison nunca foi fácil. Tirando o facto óbvio de 90% da população mundial aceitar ficar sem um (ou mais) dedos de uma mão para ter sido parte integrante dos Beatles, o facto é que o George Harrison teve que batalhar muito para ser visto, para muitos, como o seu Beatle favorito (até porque todos temos um, certo?).

Nascido em 1943, o mais novo dos Beatles sempre foi olhado pelos seus companheiros como o “puto” da banda. George ainda era menor de idade aquando da residência dos Beatles nos clubes de reputação duvidosa de Hamburgo, o que chegou a  valer-lhe a deportação por parte das autoridades alemãs. O facto de ser o mais novo de quatro irmãos, ao contrário de Paul e John, que eram irmãos mais velhos, sempre o fez sentir-se em desvantagem em relação aos outros, e isso reflectia-se na (pouca) influência que tinha na banda.

Em oposição a John e Paul, Harrison tinha uma vida familiar mais “normal”, naqueles que eram os padrões de vida da classe operária de Liverpool dos anos 40 e 50. O pai de Lennon abandonara a sua mãe bem cedo e esta acabaria por falecer, vítima de atropelamento quando John ainda estava a entrar na idade adulta. Esta conjunção de episódios traumatizantes acabariam por moldar a personalidade de Lennon para sempre, fazendo que, desde cedo, encontrasse um escape na guitarra e começasse a escrever canções. Embora de forma menos contundente, também Paul foi vítima de infortúnio na sua família devido à morte da sua mãe, Mary, quando tinha apenas 14 anos, o que fez com que tivesse de crescer mais rapidamente do que outros rapazes da sua idade.

Estas foram circunstâncias que fizeram Paul e John conectarem-se a nível emocional e que faziam de George, menino “caçula”, bastante apoiado pela sua mãe e pai, ser visto como apenas um membro de apoio desta nova banda que começava a surgir no final dos anos 50.

A sua maturação e batalha começaram, precisamente, em Hamburgo, no início dos anos 60, onde horas a fio a tocar, num ambiente boémio e alternativo, bem longe do conforto da sua família, fizeram George começar a moldar a sua personalidade. Alguém que tentava não dar muito nas vistas, mas que suportava o peso da luta titânica de egos da dupla Lennon/McCartney.

Entre 1962, altura da edição de “Love Me Do” e 1970, lançamento do último disco, Let It Be, a evolução de George foi notável. De guitarrista principal, mas figura de retaguarda a quem, de vez em quando, lhe era dado o microfone, George tornar-se-ia um compositor exímio e com um estilo de guitarra muito seu.

Quem o ouviria a cantar a primeira canção que escrevera, “Don’t Bother Me”, lançada no segundo LP de originais With The Beatles, nunca poderia imaginar que este rapaz de apenas 20 anos acabaria por se tornar num homem feito e num músico completo poucos anos mais tarde. Em Rubber Soul começamos a ver essa evolução devido, sobretudo, à mudança nos seus gostos pessoais (a influência de Dylan e dos Byrds é por demais notória) e, acima de tudo, pelo interesse na cultura indiana e sua música, a qual o fez começar a ter uma visão diferente do mundo e a ter aversão a toda a loucura causada pela Beatlemania.

O George Harrison que se despede dos Beatles, em 1970, e que caminha, livre, para uma carreira a solo, é, não apenas uma pessoa diferente daquele que conhecemos em 1962, pois o seu humor e personalidade já eram bem visíveis em várias entrevistas que foi dando no pico da fama, mas sim uma pessoa avessa a problemas mundanos e invejas. George tornou-se uma pessoa espiritual, particularidade pouco compatível com o mundo que havia ajudado a criar.

A partir de 1965, George começara a sentir-se capaz de ombrear com Lennon e McCartney, mas estes, vidrados em si próprios ainda não viam George como contendente, e continuavam apenas a dar-lhe “borlas” nos álbuns seguintes. “Taxman”, faixa que abre Revolver, mostra que as suas músicas já estavam preparadas para lutar taco a taco com qualquer composição do duo mais consagrado da história do pop/rock.

Sentindo-se cada vez mais sufocado pelos seus pares, e ainda longe de imaginar que os Beatles estariam prestes a implodir, George lançaria pérolas, disco após disco: “Within You Without You”, “While My Guitar Gently Weeps”, “Here Comes The Sun”, “Something”, entre outras.

Com o fim dos Beatles, George lançou-se rapidamente para a sua merecida carreira a solo. O início foi brilhante. All Things Must Pass, obra-prima do guitarrista, antevia um bom futuro para Harrison. Apesar de ter lançado bons trabalhos durante a década de 70, o processo de plágio a “My Sweet Lord”, a conturbada tour norte-americana e o fim do seu casamento com Patti, que acabaria por se juntar ao seu grande amigo Eric Clapton, fizeram com que o ex-Beatle começasse a ligar cada vez menos à música e mais ao seu lado de jardineiro. O decénio seguinte foi pouco produtivo para George até que Jeff Lynne o “obrigou” a sair do obscurantismo e ajudou a produzir Cloud Nine, trazendo-o de volta à ribalta. Seguiu-se uma tour no Japão e o projecto The Traveling Wilburys acompanhado de glórias do passado como Dylan, Petty ou Roy Orbison. A meio dos anos 90 ajudou a produzir a antologia dos Beatles, completando duas músicas inacabadas de Lennon – “Real Love” e Free As a Bird” – e acabaria por voltar para a sua propriedade neo-gótica Vitoriana Friar Park, perto de Londres.

Nesse tempo de hibernação, Harrison continuou a compor músicas mas sem qualquer preocupação em ir lançando discos. Já não era essa a sua principal motivação neste mundo, pelo que estava em paz consigo mesmo. No entanto, o fim da década de 90 foi penosa para Harrison. Diagnosticado com um cancro na garganta, devido, provavelmente, a anos intensos de fumador, o seu fim esteve ainda mais próximo aquando de um ataque na sua própria casa, na véspera do fim do milénio, onde foi esfaqueado quase até à morte. Este episódio mexeu muito com Harrison e, aparte a vontade de estar presente para o seu filho, mais nada o estava a prender ao mundo “terreno”. Nem de propósito, apenas pouco mais de um ano após estes acontecimentos, George sucumbiria a um outro tumor, desta vez cerebral. Um fim triste para uma pessoa tão importante e inspiradora.

Um ano após a sua morte é lançado Brainwashed, uma colecção de músicas que George tinha vindo a gravar e que planeava, um dia, lançar. Por sua vontade, as músicas seriam editadas na sua forma original, gravações caseiras e sem grandes adornos, quase como demos. Eram esses os planos que Harrison tinha dado ao seu filho, Dhani, para que este pudesse concluir as gravações, pois sabia que o seu fim estava próximo.

Editado e produzido por Jeff Lynne e pelo seu filho Dhani, este conjunto de 12 canções acabaria por não ir completamente ao encontro do combinado com o ex-Beatle. Jeff Lynne, amigo de longa data de George, tendo produzido o seu último registo de originais, Cloud Nine, participado no supergrupo Traveling Wilburys e ajudado na produção de “Free As Bird” e “Real Love”, achou que este último capítulo da vida de George Harrison merecia uma produção superior que lhe fizesse jus. Verdade seja dita, Jeff Lynne é conhecido por adociçar demasiadamente as suas produções. A sua própria banda, os E.L.O. ficaram conhecidos pelo excesso de glicose nas suas músicas. No entanto, tirando o facto de se ter alongado em demasia em algumas faixas – “Marwa Blues” ou “Rising Sun” – o resultado final foi muito bem conseguido.

O disco começa com Harrison a pedir para lhe darem bastante som da guitarra em “Any Road”, uma música simples com adição de um ukelele, instrumento de preferência de George. Uma canção que fala da grande viagem que o fab four fez por esta vida, argumentando que não interessa se não sabemos por que caminho vamos, pois qualquer estrada nos levará lá.

Em seguida, o disco entra na sua viagem espiritual, falando de obrigações religiosas católicas (“P2 Vatican Blues”), da sua própria vivência, mortalidade e aceitação do fim em “Pisces Fish” e “Looking For My Life”, enquanto em “Rising Sun” fala-nos da sua experiência de ter sido atacado e quase morto em sua própria casa (‘…almost a statistic inside a doctor’s case’) numa perspectiva etérea, onde a sua famosa slide guitar faz mais uma aparição.

O álbum tem o seu interlúdio com “Marwa Blues”, instrumental delicioso que peca por se alongar demasiadamente, repetindo-se quase ao ponto de cansar. Após esta pausa, George volta com a música mais tocante e bonita do álbum, “Stuck Inside A Cloud”. Uma faixa delicodoce, imagem de marca das composições de Harrison, falando sobre as suas vivências e dificuldades em ser uma estrela de rock, apenas tentando ser uma pessoa igual às outras.

Mais duas músicas se destacam em Brainwashed. A encantadora “Between the Devil and the Deep Blue Sea” que deixa qualquer ouvinte com um sorrisinho no canto dos lábios ao ouvi-la. A canção, uma cover dos anos 30, com George outra vez no seu ukelele, foi gravada para um especial de Jools Holland, em 1992. A outra grande canção é a própria faixa-título “Brainwashed”, canção mais roqueira e a mais politicamente assertiva do disco, onde Harrison apela a Deus para nos fazer também ele uma lavagem cerebral, pois se todas as outras entidades e empresas nos fazem, mais vale ser alguém com sabedoria e interesse a fazê-lo. Um misto de espiritualidade e intervenção que acaba com um mantra oriental, fazendo justiça à devoção à religião hindu por parte de George Harrison.

Brainwashed é, acima de tudo, uma bonita despedida de George Harrison para todos nós. Um último capítulo da sua fantástica história de vida neste planeta desde a sua timidez inicial, passando pela loucura da Beatlemania, pelo seu início de carreira a solo, as suas alegrias e desalentos até ao seu desaparecimento final. Brainwashed não nos clarifica se os traumas de ter sido um Beatle alguma vez lhe passaram, mas o facto é que não descortinamos qualquer sentimento angustiante ou de arrependimento nas suas músicas, antes aceitação e libertação. O quiet Beatle nunca tentou dar demasiado nas vistas pelo que a sua música sempre falou por si e, como sempre, bem.

Tendo em conta a qualidade geral de álbuns póstumos, Brainwashed é, com certeza, uma bela adição ao catálogo do ex-Beatle e em nada o fará envergonhar, esteja ele em que mundo estiver…



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